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MISTÉRIOS E MAGIAS DO TIBETE
Chiang Sing


Parte IV - Resumo:
Milagres de Levitação
Tsampa Tendar, o Velho da Montanha
Um casamento no Tibete
O Mosteiro de Gandin e sua árvore fabulosa
A Cura pelas Ervas e Perfumes
A Morte de um Lama do Chapéu Amarelo
Ritos de um enterro no Teto do Mundo

Milagres da Levitação

Assim que a tempestade passou, deixamos o Templo da Calma Profunda. Durante a jornada fomos colhendo informações aqui e ali. Soubemos que na encosta de uma montanha, não muito distante de onde estávamos, encontrava-se o templo dos monges que voam, os famosos "Iung om pas" ou Dragões Alados do Tibete. Não podíamos ficar neste templo porque é contra a regra dos monges. Mas pretendíamos visitá-lo, contando com a ajuda do Lama Kazi. Naquela noite nos abrigamos numa grande caverna ao pé da montanha. Esperamos ali dois dias para que Kazi fosse ao templo e voltasse com a permissão dos lamas. Assim que ele chegou, deixamos os criados na caverna juntamente com nossas bagagens e partimos, guiados por ele.

Caminhamos através de extensa planície coberta de neve. Uma hora depois passamos por uma garganta de rochas abruptas. Ali paramos um pouco para descansar. Víamos ao longe o Templo dos Dragões Alados, com seu telhado recurvo, coberto de neve, sua arquitetura muito semelhante aos outros templos que já tínhamos visto no Tibete.

Ao longe vimos um grande tronco de árvore retorcida, e acima dele algo que nos pareceu um grande pássaro.

- Olhem! - exclamou Kazi – É um monge que voa, um "Iung om pa"!

Pierre Julien preparou a máquina de filmar, colocando uma lente de grande alcance. E começou a filmar. De repente a figura moveu-se no ar e desapareceu por entre as altas montanhas.

Algum tempo depois chegamos ao templo. Fomos recebidos por quatro noviços, altos, magros, pele morena, olhos muito pequeninos e cabeça raspada. Vestiam túnicas amplas de um tecido grosso e amarelo. Eles nos levaram para uma sala pequena e rústica, sem nenhuma mobília. Sentamos no chão, sobre um tapete de lã grossa e nos serviram chá de ervas medicinais, com bastante manteiga e sal. Como estava muito frio esta bebida quente e gordurosa nos aqueceu.

Ficamos sabendo que o Superior do templo era um velho e sábio lama chamado Tsampa Tendar. Ele vive há oito anos sentado imóvel na sua cela, meditando em silêncio. Mas dirige telepaticamente seus oitenta discípulos. Visitamos as principais dependências do templo que nada tinham de especial. Depois nos levaram até a cela de Tsampa Tendar. A cela é de uma simplicidade extrema. As paredes de pedra e o chão de terra batida. Por uma fenda na pedra penetra a luz do dia. A luz tênue iluminava o rosto fino e ascético do velho lama. Sua pele era de um tom marfim, o cabelo branco e áspero, a túnica grossa de lã amarela, e nas mãos muito magras um rosário tradicional de 108 contas. Este rosário é usado por quase todos os monges do Tibete. Sua expressão é de absoluta serenidade.

Soubemos que pelo bárbaro processo de mumificação em vida, ele conseguiu ressecar o fígado e os intestinos. Atualmente vive só da vibração da força sutil do ar, cujo nome é "prana". Ante seus olhos antigos, fixos no infinito, sentimos uma sensação de alheamento. Por alguns momentos olhamos o velho Tendar, enviamos a ele nossa saudação e saímos. Fomos até um salão ornado de pinturas em seda chamadas "thankas". Como sempre, estas pinturas representam divindades lamaístas. Indagamos sobre os exercícios praticados pelos monges que voam e a resposta foi o seguinte:

"Inicialmente o noviço senta-se no chão com as pernas cruzadas, na postura do lótus. Isola o chão antes com grosso cobertor ou almofada, para evitar as vibrações negativas da terra. Aspira o ar lentamente pelo nariz. Retém a respiração e salta, sem fazer uso das mãos, conservando as pernas cruzadas. Pratica isto tantas vezes quanto puder. Consta que alguns monges chegam a saltar a grande altura. Depois seguem alguns ritos para conseguir a neutralização do peso. O período de estudo leva três anos, três meses, três semanas e três dias. Seguem também muitos adestramentos psíquicos da Yoga. Alguns conseguem tamanha perfeição que podem sentar sobre o talo de uma flor, sem dobrá-la..."

Tudo isto fez-nos recordar que também a tradição da igreja católica aceita a teoria da levitação. Basta citar S. Terezinha de Jesus, S. Tomás de Aquino, os próprios discípulos de Jesus andando sobre as águas, e Santo Antônio. Embora por outros métodos, eles também sabiam o segredo da levitação.

Sabe-se que a maioria dos lamas dos grandes mosteiros tibetanos desaprova as práticas dos monges que voam. Quando alguém comenta o assunto, respondem contando a seguinte história:

"Durante suas andanças pela Índia, Sidarta Gautama, o Buda, encontrou um eremita muito cansado, sentado à porta de sua cabana, no final de um bosque.

- Há quanto tempo vives aqui? - perguntou Buda.

- Vinte e cinco anos.

- E qual o resultado destes anos de meditação?

E o eremita respondeu, orgulhoso:

- Sou capaz de atravessar um rio, andando sobre as águas!

- Pobre amigo - disse Buda - pouparias muito mais tempo, se pagasses um barqueiro para atravessar o rio num barco...


Tsampa Tendar, o Velho da Montanha

São muitas as lendas que correm sobre Tsampa Tendar, o Guru dos monges que voam. Entre, elas conta-se que, no último dia do ano, Tendar voa em direção ao monte Potala e lá se reúne com os Mestres da Fraternidade Branca do Oriente. Seu discípulo Laikey contou-nos também o seguinte:

"Tendar nasceu num lar humilde, na região de Ngari, na tribo dos aborígenes 'Iepchas'. Ainda pequenino foi levado para o Mosteiro de Tulung Tserpung, na cidade de Lhassa. Foi educado pelos Lamas e lá aprendeu todas as magias. Como não queria ser mago negro deixou o mosteiro e foi para bem longe. Esmolou de cidade em cidade. Suas mãos, dotadas de um maravilhoso dom curativo, aliviou muitos males e curou muitos enfermos. Assim que completou cinquenta anos, Tendar resolveu devotar-se à meditação e tornou-se um ermitão contemplativo. Passaram-se trinta anos, e somente então Tendar tornou-se um 'Iumg om pa' ou Dragão Alado. Um dia, caiu em transe profundo. Seu corpo levitou e voou em direção à cidade de Lonak. Quando voltou a si, estava sendo atendido por Laikey, que naquela época era pastor de cabras. Julgando-o um santo imortal, o pastor caiu de joelhos e prestou-lhe homenagens. Tendar desfez o engano e começou a ensinar a Laikey o muito que sabia. Assim, Laikey foi o primeiro discípulo de Tendar. Ambos construíram uma pequena ermida de pedra. Depois, chegaram outros discípulos que construíram o mosteiro atual dos monges que voam."

E após contar tudo isto Laikey deu por terminado nosso encontro. Daquela região distante e brumosa, onde vivem os monges que voam, trouxemos algumas notas que serviram hoje para neste livro, recordar a história de Tsampa Tendar - o eremita que parece haver escapado às limitações físicas...


Um Casamento no Tibete

Eram quatro horas da manhã, quando deixamos a caverna das montanhas de Khangma e seguimos viagem, rumo à região do Gyangtse. O céu estava azul escuro e o ar leve e frio. Entramos numa garganta, cavada há séculos pelo rio Nyang, através da qual ainda corriam suas águas, parcialmente geladas. Andamos por este caminho estreito e perigoso, puxando nossos animais pelas rédeas. Afinal alcançamos um vale e pudemos montar novamente. O vale foi se ampliando até que avistamos a planície de Gyangtse.

Gyangtse está situada no centro de uma área fértil e populosa. Pelo caminho fomos encontrando camponeses e negociantes ambulantes. Eles sorriam à nossa passagem e punham a língua de fora, num curioso sinal de boas vindas...

Encontramos alguns lamas, a cavalo, acompanhados por discípulos. Aos poucos foram surgindo casas pequenas e grandes. No meio de pequenas colinas, os telhados recurvos e dourados dos templos brilhavam como gotas de sol.

As bonitas casas brancas de Gyangtse estavam cheias de gente alegre que veio para as janelas e varandas, ver uma caravana de comerciantes chineses, que acabava de chegar.

Chegamos a um vasto campo, onde vimos muita gente reunida em volta de várias tendas de couro. Um grupo de moças dançava ao som de uma espécie de atabaque. Suas túnicas eram alegres, em tons de verde, vermelho e azul. A saia era franzida e longa. A blusa fofa de mangas amplas, compridas, e sobre ela um avental de seda listrada de várias cores.

Paramos perto das tendas e desmontamos. Um senhor tibetano veio ao nosso encontro. Kazi explicou-lhe sobre nós. Soubemos então que celebravam a festa do casamento de Maitrei Kuchog - filha do governador de Sikkim - com um capitão da guarda pessoal do Dalai Lama. A cerimônia seria à tardinha, antes do pôr do sol e podíamos assisti-la. Agradecemos e Kazi disse que voltaríamos mais tarde. Fomos para uma hospedaria, comemos, descansamos e voltamos mais tarde. Compramos flores e fomos ao palácio do Governador de Gyangtse, onde a noiva estava hospedada. Entramos num pátio, em forma de arco, lembrando o estilo espanhol. O pátio estava cheio de gente, era amplo e bem cuidado. Lindas piscinas, margeadas de flores, espalhavam-se por bosques de bambu. Num pequeno pavilhão ao sul, os convidados deixavam os presentes. Deixamos ali nossa humilde oferenda. Sobre um grande tablado forrado de azul e semeado de almofadões bordados, estavam sentados o Governador e altas autoridades de Gyangtse. Num outro tablado em frente, também forrado de azul estavam os lamas do Chapéu Amarelo, que oficiariam a cerimônia. Ao lado deles, os irmãos do noivo. Soubemos então, que segundo a lei tibetana, a noiva desposaria também os irmãos do noivo...

Ao todo eram cinco, jovens ainda. Entre eles um bonito rapaz de uns vinte anos. Estavam vestidos com túnicas de brocado dourado, ornadas de peles de lontra. A noiva teria um belo harém de maridos!

Soubemos então que o Tibete é um dos poucos países do mundo onde há a poliandria oficial. Apesar da escassez de homens livres - pois, entre cada dois rapazes, um é monge - a mulher pode casar-se com vários homens ao mesmo tempo. Basta que tenha meios para sustentá-los...

Numa família onde não há varões, o marido n. 1 é obrigado a adotar o sobrenome da mulher. No Tibete o ciúme é praticamente desconhecido. Lá, nunca houve um crime passional. Não costumam apurar quem é o pai de uma criança, nascida numa família onde há muitos maridos. Geralmente a criança chama de pai, ao marido número 1, e de tios os outros. A questão da virgindade também não é exigida. As moças tibetanas têm uma vida sexual livre. Mas, há uma lei severa que as proíbe de engravidar enquanto são solteiras. Por isto, os meios anticoncepcionais naturais são muito conhecidos.

O divórcio é permitido, mas é muito dispendioso. Se um marido pede divórcio, tem que pagar uma quantia proporcional ao número de anos que viveu com a esposa.

Tomamos lugar entre o povo e ficamos à espera da cerimônia.

Em dado momento ouvimos o soar de um gongo. E logo apareceu a noiva. Era uma bonita moça de uns dezoito anos. Vestia a túnica nupcial chamada "Chuba". Constava de uma longa saia franzida de brocado vermelho bordada a ouro, uma blusa rosa intenso e um avental de seda listrado de verde e dourado. Este avental é chamado "pagng-den". A noiva tinha longos cabelos lisos e negros, repartidos ao meio, reunidos numa grossa trança, que lhe caia além da cintura. Na cabeça um barrete de pele de raposa branca, enfeitada com um grande broche de esmeraldas, turquesas e rubis.

Todos aplaudiram quando ela andou em direção ao noivo n. 1. Ouvimos uma música alegre. Logo, um dos Lamas desceu do tablado e traçou no chão com um pó branco, o velho emblema budista uma cruz suástica

O noivo ergueu-se e sentou-se no chão em cima da cruz. Junto dele, o lama traçou com o mesmo pó branco, uma grande flor de lótus. E a noiva sentou-se sobre a flor, com as pernas cruzadas à moda oriental. Tirando do seio um grande lenço de gaze vermelha, ela amarrou-o em volta da cabeça do noivo. Ele sorriu. Tirou do braço uma larga pulseira de ouro e entregou-a à noiva. Ela ergueu a pulseira acima da cabeça e começou a cantar. Era uma espécie de oração aos seres elementais que habitam na terra, no ar, na água e no fogo. (1)

Depois fez um juramento de fidelidade aos maridos, desejando que seu primeiro abraço fosse doce como a chegada do primeiro dia da primavera.

Em seguida fez um apelo à corte dos anjos para que estivessem presentes na cerimônia:

"Anjos do amor, Anjos da paz,
apelamos por vós;
Anjos da beleza, Anjos da misericórdia,
Vossa perfeição nos liberta.
Anjos da consolação do Raio Rosa,
Anjos da cura vinde todos;
Anjos da bondade e da bem-aventurança,
estamos prontos a servir!
Anjos da sabedoria, da alegria e da vitória,
Apelamos por vós;
Anjos da verdade e da maestria,
vossa perfeição nos liberta.
Anjos da compensação do Raio Dourado,
Anjos da bênção vinde todos;
Anjos da paz e da perfeição,
estamos prontos a servir!
Anjos da lealdade, Anjos do poder,
Apelamos por vós;
Anjos da firmeza, Anjos da força da
Vontade Divina, oh! libertai-nos.
Bem-amado protetor do Raio Azul,
Anjos do servir vinde todos;
Anjos da proteção, da unidade,
estamos prontos a servir!
Anjos da liberdade Anjos do amor,
apelamos por vós;
Anjos da misericórdia, do equilíbrio,
vossa liberdade nos liberta.
Anjos do Raio Violeta
e do perdão, vinde todos;
Anjos da justiça divina,
estamos prontos a servir!
Anjos da vida, Anjos da ascensão,
apelamos por vós;
Anjos da Chama Verde, Ouro e Rubi,
vossa superioridade nos liberta.
Anjos da pureza do Raio Branco,
Anjos do céu, vinde todos;
Anjos da perfeição divina,
estamos prontos a servir!"

Eu escutava fascinada aquele apelo aos anjos, que nos foi transmitido pelo Lama Kazi. Quando a noiva se calou, parecia tocada por um halo sobrenatural.

Foi acesa uma grande fogueira que já estava armada no pátio. Os Lamas oficiantes jogaram no fogo punhados de ervas perfumadas, um pouco de leite, manteiga e arroz cru. De mãos dadas, a noiva e os noivos andaram em volta do fogo cantando. Depois, um dos Lamas oficiantes, empunhando um bastão dourado ornado de fitas multicores, tocou-lhes o alto da cabeça, a testa e o coração, pronunciando a bênção:

"Selados no poderoso amor, sabedoria, poder e consolação do Espírito Santo, bem-amado MAHA CHOHAN, agradecemos a vós e aos reinos dos elementais e dos Anjos, às Ascensionadas Legiões de Luz, a assistência que nos prestaram.

Ajudai cada um de nós a ser a 'Presença Consoladora' em ação, para toda vida que contatemos com nossos pensamentos, sentimentos, palavras e atitudes. Expandi nosso humilde esforço e envolvei toda a vida de nossa cidade, do nosso país e de todo o mundo, com vosso amor, até que o mundo inteiro seja feliz, perfeito e livre.

Nós Vos agradecemos!"

Ouvimos os acordes de uma suave música de flauta e a cerimônia terminou. Houve gritos e vivas de todos. E a uma ordem do Governador começou a distribuição do "Koumi" - vinhos e licores tibetanos, Cheng - a cerveja nepalesa muito apreciada no Tibete, verdadeiras montanhas de carne de carneiro cozida no leite, frutas, bolos e mil e uma especiarias da cozinha tibetana. Todos comeram fartamente e em seguida começaram a dançar em volta da fogueira.

Em dado momento o noivo n. 1 fez um sinal, e um criado trouxe-lhe um cavalo. Era um bonito animal de pêlo branco, ricamente enfeitado de plumas e moedas de ouro. O rapaz montou, depois abaixou-se rapidamente e ergueu a noiva pela cintura. Ela se ajeitou na sela e saíram galopando em direção à montanha, onde ficará com o noivo durante sete dias.

A festa continuou, mas tínhamos visto o bastante. Já sabíamos como era um casamento tibetano. Então, alegres e cansados, regressamos à hospedaria.

_______
Nota:

(1) - Diz a tradição que estes espíritos elementais são os invisíveis obreiros da Natureza, criados por Deus, para servir à humanidade. São feitos de pedacinhos de ar colorido, chamado éter imponderável, e só as crianças e alguns videntes os podem ver. Os seres elementais servem a humanidade de acordo com seus predicados: as Salamandras, por meio do fogo; as Sereias e Ondinas, por intermédio da água; as Fadas, Silfos e Sílfides, em função do ar, e os Gnomos por meio da terra. Eles prepararam os corpos etéricos do ser humano, como Elementais do Desejo, zelam pela água, pelo ar e tudo o que é preciso para que possamos viver aqui. Os Mestres dizem o seguinte: "Estes seres elementais devem servir a humanidade com amor e a humanidade deve, por gratidão, amá-los e abençoá-los! O reino elemental age em direção ascendente, começando pela menor das inteligências até os construtores das formas, que criam os corpos humanos no plano astral. São os elementais que constroem as montanhas, as rochas, as pedras, os metais: as marés são regidas por eles, assim como o fogo dos vulcões. Afirmam os ocultistas que os seres elementais são "seres mentais" (el-e-mental), isto é, espíritos divinos. Cumpridas suas tarefas eles alcançam a dignidade de um Elohim ou Filho de Deus ou tornam-se os Veladores Silenciosos de um planeta, um sistema solar ou uma galáxia.


O Mosteiro de Gandin e sua Arvore Fabulosa

No dia seguinte acordamos quando o sol já ia alto. Depois do almoço saímos para visitar a cidade. A paisagem divide-se em três zonas coloridas: o azul-cobalto do céu, o ocre-alaranjado das muralhas e, ao longe, o verde das montanhas cobertas de neve. Sobre um rochedo amarelo cercado de precipícios, ergue-se o "Dzong", Isto é, o Forte da cidade de Gyangtsé, fronteira da província chinesa de Kansu. Contornamos a pé, o rochedo e lá estava a cidade aos nossos pés.

A maioria das casas e das lojas é construída em terreno plano. Os templos ficam no semicírculo das colinas. Destaca-se entre eles o célebre "Kum Bum" ou Mosteiro das Mil Imagens.

Andamos pelas ruas da cidade seguidos por um bando de crianças que gritavam e corriam, seguidos por alguns cachorros vadios. Os cachorros tibetanos, com exceção do "Lhassa apso" - o cão sagrado - parecem uma mistura de pequinês com pêlo de arame. São engraçados e muito inteligentes.

A algazarra das crianças nos perturba e não sabíamos o que fazer. Fomos andando, até o mercado onde há de tudo: roupas, peles, frutas e doces. Um velho com um grande tabuleiro vendia doces cristalizados de brotos de rododentro. Demos dinheiro às crianças para comprar doces e assim elas nos deixaram em paz. Enquanto a garotada se espalhava pelo mercado, fomos parando aqui e ali. Vimos produtos de artesanato local: bules de porcelana objetos de prata de cobre e de cerâmica. Nada de especial.

As "rúpias" indianas circulam aqui tal como o "tranka", dinheiro tibetano que é feito de couro e prata. As moedas de ouro há tempos desapareceram de circulação. Circula também um papel moeda com notas de 10, 50, 100 e 500 "trankas". De um lado tem gravados arabescos fantásticos de cores vivas, do outro a figura do leão do Tibete destacando-se sob as montanhas nevadas, os oito signos da sorte e o carimbo do Governo.

Vimos muita gente no mercado, ricos e pobres. Alguns mendigos, com um moinho de orações na mão, faziam-no girar vertiginosamente. Quando passamos por um grande arco de madeira, dois monges vieram ao nosso encontro. Ofereceram-se para guiar-nos até o Templo das Mil Imagens. Este templo é um dos mais famosos do Tibete.

Diz a lenda que pouco antes do nascimento de Tsong Kapa - o grande reformador religioso do País das Neves - um profeta falou que o menino seria um ser maravilhoso, com a missão de reformar a religião lamaica. E assim, em 1555, Tsong Kapa nasceu numa montanha de Amdo, nordeste do Tibete, num lugar isolado onde sua mãe tinha ido levar oferendas aos deuses. Do sangue perdido durante o parto e do corte do cordão umbilical, nasceu uma árvore misteriosa. Então, várias marcas apareceram nos ramos e na casca da arvore inclusive as seis sílabas sagradas "Aum Mani Padme Hum".

Esta é, pois, a origem do nome Kum-Bum, - Mil Imagens. Fomos andando em direção ao templo, muito curiosos em ver e observar tudo. O templo é todo branco e tem o telhado dourado. Na cúpula do templo há uma pintura representando dois enormes olhos castanhos. Os muros exteriores são inteiramente pintados com figuras de deuses lamaístas. Ao lado das figuras são pintados também os famosos "Mandalas". No último andar, na parte exterior, vê-se a estátua de pedra representando Dorje Chang, o Absoluto. Passamos pelo pátio central, atravessamos um vestíbulo e saímos num parque sombreado de árvores copadas. Ali, passeavam em silêncio, rezando seus rosários de coral, vários lamas usando a clássica toga amarela. Continuamos andando, passamos pelos lamas e entramos num salão grandioso e sombrio. No fundo vimos nove portas de cobre com o sinete do Dalai Lama. Em cada extremidade do salão, vimos longas cítaras, suportadas por dragões de porcelana azul. No lado oeste havia uma mesa de oferendas. Era de ébano e lápis-lazúli. Sobre ela, jarrões de ouro e prata, cheios de flores. Visitamos setenta e três capelas, cada qual mais linda que a outra. Pierre Julien, no seu afã de arqueólogo, copiou velhas inscrições e símbolos arcaicos.

A mais bonita capela é a de Maitreya, o Buda do futuro, o Senhor da Compaixão. Fomos seguindo, na nossa visita. Passamos pela cela dos ermitães, depois por um amplo vestíbulo, iluminado por candeeiros de prata em forma de lótus. Ali estavam as estátuas em tamanho natural, dos lamas chefes de Kum Bum, já falecidos. Diante de cada uma, um relicário de ouro incrustado de pedras preciosas, contendo as suas cinzas.

Mal podíamos conter nossa curiosidade em ver a árvore milagrosa de Kum Bum. Nos relatos de sua jornada ao Tibete, os padres franceses Huc e Gabet, afirmam ter lido as palavras "Aum Mani Padme Hum" nas folhas e nos troncos das árvores. Insistem sobre o fato de que as letras, em vias de formação, apareciam também nas folhas novas e debaixo da casca da árvore.

A descrição dos reverendos abades franceses do século XVI é realmente exata, foi o que constatamos logo a seguir. Atualmente esta árvore milagrosa está protegida por um Chorten ou relicário, aberto na parte de cima, de uns doze a quinze metros de altura.

As crônicas antigas de Kum Bum dizem que esta árvore permanece inalterável quer seja inverno ou verão e que o número das folhas é sempre o mesmo.

O Chorten, aberto em cima para que penetre a luz do sol, eleva-se em meio a um pequeno templo com telhado dourado.

Em frente a este templo cresce um rebento da árvore milagrosa, rodeada por uma grade de madeira pintada de branco.

Uma outra muda maior, originada da árvore milagrosa que está dentro do relicário, foi transplantada para um pequeno jardim que precede o templo interno.

Os lamas recolhem as folhas caídas destas duas árvores, para distribuí-las entre os visitantes.

Cada um de nós ganhou uma destas folhas. Nela vimos gravados os símbolos masculino e feminino do Cosmos, juntamente com o restante da fórmula sagrada: "Aum Mani Padme Hum!"

Soubemos então que as seis sílabas desta fórmula correspondem às seis classes de seres conscientes e estão relacionadas com as cores místicas.

"Aum" corresponde ao branco e relaciona-se com os deuses ("Lha").

"Ma" corresponde ao azul e relaciona-se com os não-deuses ("Lhama-yin").

"Ni" corresponde ao amarelo e relaciona-se com o ser humano (mi) e também com o símbolo dos princípios masculino e feminino do Cosmos, o "Yin Yang".

"Pad" corresponde ao verde e relaciona-se com os animais ("tudô").

"Me" corresponde ao vermelho e relaciona-se com os não-humanos ou elementais.

"Hum" representa a ausência de cor, o negro, e relaciona-se com os que sofrem no purgatório.

Dizem os lamas que a recitação desta "Aum Mani Padme Hum! pode liberar do renascimento em qualquer dos seis reinos.

Olhamos atentamente aquela folha milagrosa e a guardamos como preciosa relíquia. Após andarmos muito pelo parque, vendo uma coisa e outra, deixamos os lamas de Kum Bum entregues às suas meditações e voltamos à hospedaria.


A cura pelas ervas e perfumes

Naquela noite adoeci de repente. Tive há tempos uma febre perniciosa, mas não dei atenção. Seria a mesma febre que me acometia de novo? Passei o dia indisposta e febril. Mahima sugeriu que chamássemos um médico. Mas Kazi achou melhor levar-me para consultar o médico-lama do mosteiro de Kum Bum. E assim fomos até lá. Explicamos a um noviço o motivo da nossa vinda e ele nos levou a um pátio interno, que não tínhamos visto anteriormente por ocasião de nossa visita. Neste pátio estavam as "garbas" ou celas dos médicos do templo.

O noviço parou junto a uma delas e entramos. Era uma cela pequena, iluminada por um candeeiro a óleo. Vimos nas paredes inúmeros feixes de ervas secas e um aroma muito agradável desprendia-se delas. Sentando no chão, com as pernas cruzadas estava um rapazinho de uns vinte anos, vestido com a toga clerical amarela. Seu rosto era magro, de expressão séria e na sua cabeça raspada vimos as sete cicatrizes do ritual místico. Ele parecia ler um grande livro de capa de madeira. O noviço falou-lhe em voz baixa. O rapaz olhou-nos atentamente e fez um sinal para que nos sentássemos perto dele.

Com a mão direita o jovem lama traçou no ar sinais estranhos, como se fizesse um apelo às forças invisíveis. Aplicou o ouvido direito à minha mão esquerda, tomando assim o meu pulso à moda chinesa, isto é, observou meus 14 pulsos, 8 à direita e 6 à esquerda. Consta que cada um deles corresponde à atividade hiper, hipo ou normal dos órgãos internos.

Ficou quieto alguns minutos. Depois falou:

- Escuta e crê, pois o que te direi é a pura verdade: a doença que tens não é grave. Apenas um desequilíbrio entre o positivo e o negativo ou "Yin e Yang". Amanhã estará curada.

Tive um sorriso incrédulo, mas fiquei em silêncio. O lama queimou um punhado de ervas perfumadas num braseiro. Mandou que eu aspirasse profundamente o aroma das ervas. Assim fiz.

- Este é o seu perfume-remédio - disse ele. Aqui no templo, tratamos os doentes pelo processo da Osmoterapia e Acupuntura.

Sabemos que cada pessoa está em vibração com certas plantas que, por sua vez, estão influenciadas pelos astros Pelo formato do seu rosto sei que nasceu no mês de maio, sob a influência dos planetas Vênus e Saturno e as plantas que vão curá-la são estas, cujo aroma acaba de aspirar. Amanhã, já não terá mais febre. Mas, como seu fígado está inflamado, é preciso voltar aqui amanhã para fazer uma aplicação de Acupuntura.

Terminada a consulta, deixamos o templo e voltamos à hospedaria. De noite piorei muito. Já estava descrente da medicina dos lamas, quando aos poucos senti alívio. A febre foi baixando e logo um grande bem-estar invadiu todo o meu corpo. Senti uma doce sonolência e adormeci.

No dia seguinte, quando acordei, o sol já ia alto. Sentia-me completamente bem. Meu corpo estava leve e o cérebro mais lúcido.

- Benditas ervas tibetanas! - murmurei contente e saltei da cama alegre como um pássaro.

Mahima entrou no quarto e sorriu:

- Já sei que está curada!

- Realmente, estou muito bem. Acho que nem preciso voltar a consultar o médico-lama.

- É melhor voltarmos, não seja ingrata!

- Como será o tratamento que ele quer me aplicar?

- São leves picadas com agulhas de ouro e prata, em certos centros vitais que eles chamam de meridianos - retrucou Mahima.

- Como? - indaguei com medo.

- Calma! O tratamento é indolor, porque antes de colocar a agulha o lama anestesia o local com o suco de plantas especiais.

Mais tarde Kazi explicou algo sobre o segredo das agulhas de ouro e de prata.

- A acupuntura é um método terapêutico muito antigo. Reequilibra nosso organismo de um modo rápido e eficaz. Além do ar, luz e comida nosso corpo absorve vibrações mais altas do Cosmos, especialmente a energia eletromagnética '''Ki'', captada através de vários pontos de pressão. Esses pontos, localizados profundamente na pele, têm estrutura em espiral e determinam os canais ou meridianos, que transmitem essa energia eletromagnética através do corpo. Nos organismos saudáveis existe uma livre e desimpedida circulação de "Ki", força magnética vital, de órgão para órgão, através dos meridianos. A existência destes meridianos e sua relação com os pontos de pressão são conhecidos pela medicina oriental há milhares de anos. Conhecendo os pontos certos, onde se possa provocar uma assimilação ou troca de energia, conseguiremos rapidamente restabelecer o fluxo energético ou a saúde, quando algum órgão não estiver normal.

Eu ouvia interessada aquela curiosa explicação. Após uma breve pausa, Kazi prosseguiu:

- Quando um órgão funciona mal, os pontos ao longo de seu meridiano correspondente fica dolorido e enrijecido antes mesmo que o órgão se manifeste. A rede de meridianos, que se ramifica logo abaixo da pele, é na verdade parte integrante do mecanismo de controle e dos meios de defesa que regem o corpo. Os médicos orientais colocam nestes pontos as suas agulhas de ouro e de prata. Deixam-nas ficar espetadas na pele algum tempo até que elas fiquem moles e fáceis de serem retiradas. Isto é o sinal de que o órgão já está equilibrado. Usamos também aqui no Tibete, um método de massagem terapêutica chamado "Tayu-Na". É uma massagem livre, feita nos meridianos que estão doloridos. Do "Tayu-na" originou-se o "Do in", um método de auto massagem excelente, muito usado no Japão. Tendo os mesmos princípios da Acupuntura, costuma ser chamada "massagem acupuntura". Seu uso, no Oriente, perde-se na noite dos tempos.

Fiquei contente ao ouvir estas palavras, e quando parti para o templo de Kum Bum, estava mais confiante. O médico-lama primeiro escutou os meus pulsos, tal como da vez anterior. Depois, abriu um estojo de seda onde alinhavam-se inúmeras agulhas longas e finas. Eram de ouro e de prata. E começou a espetar as agulhas em certos pontos do meu corpo. Primeiro uma na testa, bem entre os olhos. Para me acalmar, disse o lama. Em seguida colocou duas agulhas de ouro nos dedos grandes dos meus pés. Outras no tornozelo, no meio da perna e na curva do joelho. No alto da cabeça também espetou uma agulha longa e fina e nos dedos das minhas mãos. Algumas doeram, mas foi uma dor perfeitamente suportável.

Por algum tempo fiquei com as agulhas espetadas no corpo. Fui me sentindo leve, contente, como estivesse flutuando num céu sem nuvens.

Fiquei sabendo que os metais brancos como a prata, o aço e a platina, exercem uma ação sedativa nos paciente. O ouro, ao contrário, tem uma ação estimulante.

O lama experimentava para ver se as agulhas já estavam ficando moles. Algumas saíram com facilidade, outras permaneceram firmes.

- Esperemos - disse ele - o órgão ainda está tenso.

Pouco a pouco as agulhas foram saindo sem nenhuma dificuldade. Ele as retirava delicadamente, sem me machucar. Senti-me repousada, bem disposta e feliz.

- Sua reação é muito boa - disse o lama - a pequenina irmã já está curada. Tome um chá destas ervas e não sentirá mais nada.

Agradecemos ao médico-lama e aproveitamos para perguntar algo sobre as plantas curativas do Tibete.

Os médicos lamas tibetanos consideram cada planta como uma estrela terrestre. Estão em relação com os astros. Suas propriedades celestes estão em relação com as pétalas e as flores. As propriedades terrestres estão nas folhas e nos caules. Na Medicina as plantas podem ser empregadas verdes ou secas. A planta verde é melhor.

- Muitas pessoas no Ocidente - falei - gostam de se tratar com ervas. Poderia indicar algumas plantas medicinais e seu uso apropriado?

- A maioria das nossas ervas são desconhecidas no Ocidente - respondeu o médico-lama - mas, posso indicar-lhe algumas, com seus nomes latinos. Assim temos:

Polygonum Persicaria para curar úlceras e feridas.

Menta Polegium, para a amenorréia uterina. Boccomia Cordata, para picadas de insetos. Lilium Tigrinum, para as dores ovarianas. Polygonu, Bistorta cura disenteria. Todas estas plantas podem ser encontradas no Ocidente com facilidade. Temos ainda a raiz de gengibre, boa para o estômago e o fígado, usada em forma de chá, após as refeições. Também o chá de folhas de pessegueiro e a casca do salgueiro são muito boas para curar as hemorragias comuns na menopausa. E como reconstituinte geral temos a raiz de "Ginseng" da Coreia, considerada na antiga China como a planta da imortalidade. Foi usada por muitos imperadores chineses como tônico afrodisíaco. O Ginseng tonifica não só os órgãos sexuais como o organismo em geral.

Ao despedirmo-nos o médico-lama informou que dali a dois dias, o templo festejaria o nascimento de Sidarta Gautama, o Buda e convidou-nos para assistir à festa.

Ficamos contentes com mais aquela oportunidade de observar os costumes tibetanos.

________


- Soube do endereço de um adivinho, que possui um misterioso livro mágico. Vamos visitá-lo hoje?

Esta sugestão vinha do Dr. Vessantára, e foi logo aprovada por todos.

Era uma manhã escura, fria e ventosa, mas saímos assim mesmo, curiosos e alegres. Depois de muito andar por um vale deserto, cercado de serras abruptas, chegamos à ermida do adivinho. Era toda de pedra branca, pequena e acolhedora.

O adivinho estava sentado sobre uma esteira de bambu atendido por dois discípulos.

Era um velho muito formoso. Usava uma tanga de algodão branco e um manto também de algodão branco, caía-lhe folgadamente pelas costas. A cabeça era raspada, nariz aquilino, encimado por um par de olhos, castanhos e acerados como os de uma serpente. Seu rosto tinha uma curiosa expressão de sabedoria e autodomínio.

O lama Kazi explicou-lhe o motivo da nossa visita. Ele sorriu e mandou que sentássemos no chão, perto dele. Um dos discípulos trouxe-lhe um livro envolto numa echarpe de seda amarela. Era o famoso livro mágico sobre o qual Vessantára ouvira falar.

O livro, retirada a echarpe, tinha um outro envoltório de linho branco. Parecia um manuscrito simples, como muitos dos que já tínhamos visto no Tibete. As folhas eram de pergaminho e nelas viam-se gravados estranhos caracteres. Parecia um livro velho, amarelado, com as letras douradas meio apagadas pelos anos e o constante manuseio. O ancião colocou o livro no colo do Dr. Vessantára. Disse-lhe que pegasse no cordão de seda vermelha do registro e o passasse ao acaso entre duas folhas, abrindo-as logo naquele lugar. Ele assim fez. Então, o adivinho começou a ler o que estava marcado. E falou:

- Quando meu honorável hóspede nasceu, a Lua estava em conjunção com Mercúrio no signo do Búfalo, mas o sol do seu nascimento estava colocado no ano do Cavalo...

E seguiram-se detalhes sobre a infância e a mocidade de Vesssantára. Seus estudos médicos num país distante da sua terra natal, seu casamento com Mahima e muitas outras previsões que resultaram ser certas. Comigo, com Mahima e com Pierre as adivinhações também foram corretas.

E por longo tempo o adivinho falou sobre nossos destinos. Revelou nomes de parentes e amigos que estavam no Brasil, previu diversos fatos interessantes para todos nós e terminou dizendo:

- Esquece os erros do passado! O remorso é uma forma de presunção. Por mais longe que possamos buscar na noite das idades, é impossível descobrir a origem de um sofrimento que não tenha causa. Esquece-te do EU e sê um instrumento que semeia a Paz, a Sabedoria e o Amor...

Fiquei perplexa com estas palavras que nos foram traduzidas por Kazi. Afinal o adivinho calou-se. Fechou os olhos e pareceu alheio a tudo. Empalideceu de repente e seu corpo ficou rígido. Dr. Vessantára quis tocar nele, mas logo um dos discípulos falou:

- Não o toque, senhor! O venerável Mestre está agora em transe profundo. Se o interrompermos podemos causar-lhe algum mal. Convém que se retirem, a consulta terminou!

Levantamo-nos e saímos. Pierre quis deixar algum dinheiro, mas os discípulos recusaram:

- Por favor dê este dinheiro aos pobres!

E assim deixamos o misterioso adivinho tibetano, entregue às suas meditações, voltamos à cidade surpresos e encantados com seus poderes adivinhatórios.

No dia seguinte nos preparamos para assistir à festa do nascimento de Buda, no Templo de Kum Bum. Entardecia quando chegamos. Um serviço religioso já começara no pátio, em frente ao pavilhão central. O ar estava pesado de incenso. Sinos batiam alegremente. Soaram também as longas trombetas tibetanas. Uma compacta multidão reunia-se ali. No chão, vimos traçados os indispensáveis círculos mágicos, desenhados caprichosamente com pós coloridos. A música religiosa prosseguia lenta e monótona. Seguiu-se um rito no qual o abade de Kum Bum queimou um boneco de cera com figura humana. Consta que neste boneco os lamas concentram os pecados da humanidade e queimando-o limpam a aura de todos. Um tambor começou a soar ritmicamente. Trouxeram uma estátua de bronze representando um deus lamaísta de quatro cabeças e oito braços.

- Por que tantas cabeças e tantos braços? - perguntei ao lama Kazi. E ele respondeu:

- Estas quatro caras olham para os quatro pontos cardiais, porém todas pertencem a um só corpo do deus. Como acreditamos que ele é onipresente, seus quatro rostos estão voltados para as quatro direções. Seus oito braços revelam sua onipotência e seu corpo nos expressa que é Uno, embora se encontre em todos os lugares, sem que nada possa escapar a seus olhos, que tudo veem, nem às suas mãos justiceiras.

Nosso diálogo foi interrompido por um grupo de lamas que começaram a dançar em volta da estátua do deus. Eram cerca de duzentos. A dança era ligeira e fascinante. Eles saltavam e gritavam, ao som dos tambores e das trombetas. De repente cessaram a dança. O grupo se desfez. No centro do pátio ficaram apenas sete lamas. Eram altos e imponentes nas suas longas túnicas cor de laranja. Um toque mais cadenciado dos tambores advertiu que íamos assistir a um rito importante. Observamos em silêncio os lamas dançarem com movimentos lentos e harmoniosos.

Ficaram assim alguns minutos. De repente deu-se um curioso fenômeno. Vimos formar-se perto dos lamas uma nuvem cinzenta. A nuvem foi se condensando aos poucos, até formar a figura austera de um velho esguio e ereto. Seguiram-se palmas dos assistentes as quais pareciam aclamar a figura materializada. Ouvimos então a saudação unânime:

Aum! Aum!

Era o som sagrado pronunciado de um modo especial. Corresponde aos deuses e ao triângulo superior da Yoga. Consta que desperta as forças invisíveis do Cosmos.

Seis materializações sucederam-se à primeira em curto espaço de tempo. Vessantára filmou o grande espetáculo. Estávamos confusos. Estaríamos mesmo vendo a materialização de espíritos, ou sendo vítimas de uma alucinação coletiva?

Algum tempo depois constatamos a veracidade do fato. O filme reproduziu exatamente o fenômeno das materializações. Soubemos que estes estranhos seres fluídicos, formados pelo ectoplasma dos presentes, não eram espíritos de gente morta, mas sim seres encantados da Natureza, os elementais que vivem nos quatro elementos: terra, água, fogo e ar. São chamados "Yidans" pelos tibetanos, que os consideram uma espécie de divindades tutelares.

Os tambores tocaram com mais força, à medida que iam se materializando os "Yidans". Vimos gigantes, gnomos, lindas mulheres pequeninas de asinhas transparentes, delicadas colunetas de fogo, de onde saíam salamandras, duendes e ondinas.

Nossa emoção era tanta que mal podíamos respirar. O filme de Vessantára provou-nos que não tínhamos sido hipnotizados. Sem duvida, nada é mais fantástico do que a própria realidade...

A cerimônia terminou quando os lamas trouxeram a estátua de Sidarta Gautama, ainda menino. Estava sob um andor florido e foi colocado no meio do pátio, junto a uma bacia de bronze, suspensa num pedestal, onde havia chá doce. Com uma colher de cabo comprido, também de bronze, os lamas banharam a cabeça da estátua, murmurando enigmáticas orações.

- Por que fazem isto? - indagamos.

- Diz a lenda - respondeu Kazi - que banhando a cabeça do Buda menino com chá doce, nossa vida também fica doce...

A estátua era formosa e delicada. Tinha as trinta e duas marcas sagradas que distinguem os Budas. Entre estas destacam-se as longas orelhas, que escutam sempre as músicas celestiais a flor de lótus nas palmas das mãos e a cruz suástica, o antigo símbolo budista, nas plantas dos pés. Dizem que todo Dalai Lama também nasce com estas marcas nas mãos e nos pés.

Formou-se uma fila e cada pessoa inclinava-se diante da estátua e depois, pegando na colher de cabo comprido enchia-a de chá doce e com ele banhava a cabeça do Buda menino, fazendo seus pedidos.

Eram duas horas da madrugada quando terminou a festa. Saímos do templo ao som de um grande búzio, que um menino soprava lentamente. Algumas mancheias de cevada, lançadas com um gracioso sorriso e acompanhadas pelo canto litúrgico de "tashi shog!" (que haja prosperidade) ressoavam nos nossos ouvidos com um som doce e nostálgico.


A Morte de um Lama do Chapéu Amarelo

- Seguimos hoje para Tashilhumpo. Sua bagagem já está pronta? - indagou o lama Kazi.

- Falta apenas fechar as malas - respondi.

Nisso, um forte dobrar de sinos me assustou - e um oboé iniciou uma melodia melancólica.

- Que será isto? - indaguei surpresa.

Aproximamo-nos da janela e olhamos a rua. Havia um certo burburinho entre o povo.

- Alguém morreu! - falou Kazi - Vou sair e saber quem foi. Momentos depois voltou dizendo:

- O Lama Sithar morreu de repente!

- Quem é ele?

- Um dos Budas Vivos de Gyangtsé.

- Que pena! - exclamei num impulso.

- Não lamente, pequenina irmã. Sabemos que a morte é pura ilusão. A vida continua em outros planos, pois a alma é imortal...

- Sim, é verdade - concordei, envergonhada por ter esquecido. Nunca devemos lamentar os que partem para além da vida.

- E além do sofrimento - completou Kazi.

- Gostaria de assistir ao enterro deste lama.

- Aqui no Tibete - disse Kazi - não enterramos ninguém tal como é costume no ocidente. Como temos muita madeira, queimamos os cadáveres. Somente nas regiões do centro e do Norte, onde o único combustível é o esterco do gado, é que o povo abandona os mortos aos corvos, em lugares destinados a isso. Quanto aos grandes lamas, em geral são embalsamados por um processo duplo: sal grosso e cozimento em manteiga de iaque. Estas múmias chamam-se "mardong". Geralmente são encerradas numa grande caixa de prata, ornada de pedras preciosas e guardadas nas cavernas dos templos, ou em algum lugar seguro. As faces são pintadas de dourado e o corpo envolto em togas de gala. Nestas caixas há um visor de cristal, colocado na altura da cabeça do morto. E assim, em alguns dias especiais, o povo pode ver estas múmias sagradas.

Soubemos então que geralmente quando o moribundo solta o último suspiro, os parentes vestem-no com roupas ao contrário, isto é, a parte da frente do traje, vestida para trás; logo amarram o corpo na posição do Buda, com as pernas cruzadas, ou então com os joelhos dobrados, tocando o peito. Depois, colocam o corpo num grande caldeirão. Mais tarde retiram o corpo. E aquele mesmo caldeirão é lavado sem grandes cuidados e nele preparam chá ou uma sopa que é distribuída aos que assistem ao funeral...

Soubemos ainda que o enterro de uma pessoa comum demora muitos dias. Cerca de sete ou oito. Enquanto isto, os lamas são chamados para rezar e aconselhar o morto a que não se sinta aturdido no outro mundo... Nesta ocasião são lidos trechos de um livro tibetano intitulado "Tse hdas Kyi rmanches thog granG", isto é, "Guia do Espírito no Além":

- "... escute-me. Você está morto, esteja certo disso! Não tem mais nada a fazer aqui. Alimente-se bem pela última vez. Você tem uma longa estrada a percorrer e diversas montanhas para cruzar. Adquira forças e não volte aqui nunca mais".

As famílias tibetanas que têm meios para pagar os lamas oficiantes, repetem diariamente os ritos fúnebres, durante seis semanas. Depois disto, é feita uma imagem de papel com uma leve moldura de varas, onde são penduradas as roupas e pertences do morto. Algumas vezes o retrato do morto é ali pregado. Com muita frequência usam uma folha de papel já pronta, fornecida por um mosteiro. Estas folhas de papel são de dois modelos: uma com a pintura de um homem e a outra com a de uma mulher. O nome do morto é escrito sob a figura desenhada ou pintada.

Finalmente o lama oficiante queima a folha de papel com a efígie da pessoa morta. As roupas que vestiram a efígie são dadas ao lama, como parte dos honorários.

Depois desta incineração simbólica os laços que ainda ligavam o morto a este mundo são considerados desfeitos.

Quando os parentes começam a sonhar muito com o morto, pensam que ele está sofrendo e precisa de auxílio. Recorrem então aos lamas adivinhos. Outros preferem as práticas espíritas da antiga religião do país, a seita dos "Bon pas".

Assim consultam um médium "pawo" que empresta seu corpo ao morto e fala por ele. As sessões espíritas no Tibete são muito diferentes das que se fazem no ocidente. Geralmente são feitas durante o dia e ao ar livre. Começam cantando uma espécie de "ponto" acompanhado por um tambor e uma sineta. Depois o médium começa a dançar lentamente. Em seguida, com passo mais rápido, ele começa a girar depressa, a tremer convulsamente. Isto revela que o espírito já tomou conta do corpo. Então, fica frenético e canta com voz entrecortada Diz então o que o espírito deseja. É muito difícil compreender as palavras dos "pawos". Para interpretá-las são escolhidos os homens mais inteligentes do lugar.

Durante a sessão acontece que diferentes espíritos se apoderam, sucessivamente do médium, às vezes o "pawo", impelido por algum espírito, atira-se sobre um dos presentes e o cobre de pancadas...

Ninguém oferece resistência a esta surra inesperada. O povo ignorante imagina que ela concorre para livrá-los de futuros males.

Nos rituais "Bon pas" os espíritos pedem o sacrifício de um porco ou de uma vaca, para serem libertados no astral inferior: A família faz tudo o que ele pede. E quando termina a cerimônia fica aliviada, crendo que ajudou muito ao parente desencarnado...

Quando se confia a um lama o cuidado de libertar o espírito, não há nenhum sacrifício, pois o budismo lamaísta proíbe o sacrifício de animais. Os lamas limitam-se a rezar e a queimar sua efígie pintada no papel, conforme descrevemos mais acima.


Ritos de um Enterro no País das Neves

Durante todo o dia ouvimos os cânticos lúgubres, pois toda a cidade de Gyangtsé chorava a morte de seu Buda vivo. No dia seguinte, na terceira hora da tarde fomos ao mosteiro onde vivera o lama. Um rito secreto ia ser cumprido. Vários lamas de outros mosteiros visitavam o morto. No parque do mosteiro da Luz Divina estava o corpo do defunto lama, já cuidadosamente cozido em sal grosso e manteiga. O defunto usava apenas uma tanga de algodão amarelo, e o corpo estava amarrado com as pernas cruzadas, na postura de Buda. Em volta do defunto, vários lamas recitavam suas preces. Seu rosto estava calmo e sereno. Parecia estar dormindo.

Antes de morrer o Lama Sithar tinha indicado o corpo onde sua alma iria habitar. Tratava-se de um menino de oito anos filho de uma família pobre de Gyangtsé. A criança já estava ali devidamente lavada e cuidada pelos lamas. Seu rosto miúdo, de olhos amendoados, reflete medo.

Os gongos começaram a soar forte, acompanhados por sinos e tambores. O menino teve uma espécie de estremecimento. Os lamas trouxeram-no para junto do cadáver. De um braseiro de prata subia a fumaça do sândalo e do incenso.

Uma procissão de lamas avança lentamente, em direção ao esquife. Cuidadosamente eles desamarraram os braços do morto. Em seguida, colocaram o menino sentado sobre os joelhos do falecido, e tornaram a amarrar os braços. Um véu de gaze branca cobriu os dois. Bruscamente cessaram os tambores, sinos e gongos.

A voz grave de um lama pronuncia palavras ritualísticas. Em seguida, cuidadosamente desamarram novamente os braços do morto. Súbito, um grito agudo fere o ar. Os lamas correm para junto do morto. Então, o menino fica em pé, sobre, os joelhos do morto. E começa a falar com voz de homem. Numa atitude de absoluta autoridade ele diz:

- Sou eu, o Lama Sithar! Desci de onde estive repousando e vim habitar novamente entre vós. Meus amados discípulos, neste novo corpo continuarei minha missão na terra até terminá-la...

A expressão infantil do rosto do menino tinha desaparecido. Em vez dela vimos uma energia espiritual em seu rosto, e uma profunda sabedoria saindo de sua boca, numa voz de homem...

Os lamas colocaram diante dele várias taças de chá, misturando-as, intencionalmente com os objetos que tinham pertencido ao lama Sithar. Vimos que o menino, ao ser solicitado pelo abade, escolheu rapidamente os objetos sagrados, dizendo:

- Esta é a minha taça! Este é o meu chapéu e aquele é o meu punhal mágico!

Todos se inclinaram satisfeitos e homenagearam o novo Buda Vivo. O menino abençoou a todos e disse:

- ...Possuir a sabedoria que descobre em tudo os elementos de que as coisas são compostas, assim é o infinito... possuir a sabedoria que dissipa a ilusão da realidade durável das formas e da personalidade é indispensável para que sejam eficazes à compaixão. Sei que em minhas vidas anteriores possuí muitos dons, mas não os usei totalmente. Esta sabedoria eu não posso ensiná-la. E eis o que resolvi fazer. Vou encerrar-me na minha cela durante três anos, três meses e três dias. Se durante este período conquistar a sabedoria que desejo, voltarei para dá-la àqueles que estão preparados. Caso não consiga a minha meta, continuarei recluso por tempo indefinido. É para obter este conhecimento da sabedoria universal que voltei!

A agitação entre os presentes era extrema, Todos queriam venerar o Mestre que voltara do além, Mas... de repente... o menino desmaiou. Os lamas correram e deitaram-no sobre almofadões de seda. Pouco a pouco ele voltou a si e olhou com espanto para os que o rodeavam,

- Sente-se melhor, Precioso Lama?

Não sei quem sou... parece que adormeci e tive um sonho...

- É preciso descansar, senhor! - falou o abade. Acha que pode andar? Se isto o fadiga poderemos levá-lo no colo.

- Estou bem... um pouco fraco, mas posso andar.

E o menino levantou-se, e saiu acompanhado pelo abade. Antes de sair do parque, voltou-se e olhou o corpo do Buda Vivo. Em seguida retirou-se para o interior do Mosteiro da Luz Divina.

Os sinos e os tambores recomeçaram a tocar. E todos pareciam alegres e contentes. O cadáver foi acomodado dentro do esquife de prata e carregado para uma sala subterrânea do mosteiro. Depois todos se retiraram sorrindo felizes porque o seu Buda tinha voltado.

Achei tudo isto muito estranho e não entendi o seu significado oculto. Mas Kazi falou que estas transmigrações de almas são muito comuns no Tibete. Escolhem uma pessoa que tenha um Carma curto, isto é uma vida curta na terra. Um "tsispa" ou astrólogo levanta o horóscopo desta pessoa e descobre coisas ocultas, inclusive o dia em que deve morrer. Então, na época certa, levam o escolhido para junto do Buda que vai ressuscitar e ele troca a sua alma com a alma da pessoa. Aquele que cedeu seu corpo recebe o mérito de viver entre os Puros de Espírito...

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