O Problema Espiritual do Homem Moderno
C. G. Jung

O problema espiritual do homem moderno é uma dessas coisas que pertencem tão intimamente ao presente em que vivemos que não é possível julgá-las plenamente. O homem moderno é um ser humano que se formou de novo e o problema moderno é uma interrogação cuja resposta encontra-se no futuro. Ao abordar, portanto, o problema espiritual do homem moderno podemos, no máximo, fazer uma pergunta - e talvez deveríamos fazê-la de maneiras diversas, se tivéssemos a mínima insinuação da sua resposta.

A pergunta parece ser tão ambígua, mas, na verdade, tem a ver com algo tão universal que escapa à compreensão de qualquer ser humano.

Temos, por conseguinte, bastantes motivos para abordar este problema com moderação e muita precaução. Estou profundamente convencido disso e desejo realçá-lo ao máximo, porque são precisamente tais problemas os que nos induzem a utilizar palavras altissonantes, pelo que me verei forçado a dizer algumas que poderão parecer atrevidas e imprudentes.

Para começar, com um exemplo de tal evidente falta de precaução, direi que o homem chamado moderno, consciente do presente imediato, não é, de nenhuma maneira, o homem comum. É, sim, o homem que se encontra no cume, ou mesmo na beira do mundo, e o abismo do futuro se abre diante dele. Acima dele encontra-se o céu e abaixo, a totalidade da humanidade, com uma história que desaparece nas brumas pré-históricas.

O homem moderno ou, repetimos, o homem do presente imediato, é muito raro e é raro encontrá-lo. Muito poucos podem ser denominados assim, por serem conscientes em grau superlativo. Ser plenamente consciente do presente significa ser plenamente consciente da própria existência, requer, como homem, a mais intensa e ampla consciência com um mínimo de inconsciência.

Deve compreender-se, com toda clareza, que o mero fato de viver no presente não faz moderno o homem, porque nesse caso todos os que vivem no presente o seriam. Somente é um homem moderno quem é plenamente do presente.

O homem, a quem podemos chamar com justiça de "moderno", está só, por necessidade e em todo momento, porque, cada passo dado para a plena consciência do presente, o separa de sua original "participação mística" com os demais homens - de ser submerso na inconsciência comum. Cada passo adiante o libera dessa oniabarcante e primitiva inconsciência que subjuga quase completamente toda a humanidade. Ainda em nossas civilizações, as pessoas que formam, psicologicamente falando, o estrato inferior, vivem quase inconscientemente como as raças primitivas. Os que se encontram nos estratos seguintes manifestam um nível de consciência que corresponde aos começos da cultura humana, enquanto os do estrato superior possuem uma consciência capaz de manterem-se a par com a vida dos últimos séculos. Somente o homem moderno, de acordo com o que significa o termo, vive no presente. Não lhe interessam as lutas nem os valores do passado, exceto do ponto de vista histórico. Nega-se a "viver na história" no sentido mais profundo, e se isola dos homens que vivem limitados pelas tradições. Na realidade somente é completamente moderno quando chegou mesmo na borda do mundo, deixando para trás tudo que foi descartado e transcendido, dando-se conta que se encontra ante um abismo do qual podem surgir todas as coisas.

Poderá parecer que estas palavras são vazias e triviais. Não é nada fácil demonstrar uma consciência do presente. Na realidade, a maioria das pessoas pretende ser modernas sem ter passado pelas diversas etapas de desenvolvimento e sem ter realizado o que tais etapas implicam na vida. Repentinamente, eles aparecem ao lado do verdadeiro homem moderno, como seres humanos delicados e parasitas, cujo vazio é confundido com a não invejável solidão do homem moderno que é, desta maneira, desacreditado. Os verdadeiros homens modernos, poucos no total, estão ocultos aos olhos da massa por essa nuvem de fantoches que são os pseudomodernos. Isto é inevitável. Haverá sempre dúvida e suspeita do homem "moderno", e isto sempre foi assim.

Ser moderno significa renunciar a tudo, fazer votos de pobreza e castidade num novo sentido e, o que é mais doloroso, renunciar à auréola que outorga a história como sinal de aprovação. Negar-se a viver na história é o pecado de Prometeu, e, neste sentido, o homem moderno vive em pecado. Estar num nível superior de consciência é como ter um pesadelo. Mas, como já foi dito, somente o homem que já transcendeu as etapas de consciência do passado e já cumpriu amplamente os deveres que o mundo lhe impõe, pode conquistar plena consciência do presente. Para fazê-lo tem que ser sensato e eficiente no mais amplo sentido, pois é um homem que conseguiu realizar tanto como outros, mas algo mais. Estas qualidades lhe permitem obter o nível seguinte de consciência.

Falar de eficiência com os pseudomodernos torna-se repulsivo, pois lhes traz desagradáveis recordações de suas próprias mentiras. Entretanto, nada impede que este seja nosso critério com o homem moderno, pois ele é eficiente. Até nos vemos obrigados a isso, porque a não ser que seja eficiente, o homem que pretende ser moderno somente seria um julgador inescrupuloso. Deve ser eficiente no mais elevado sentido, porque romper com a tradição é ser desleal com o passado e isto não pode ser compensado pela sua capacidade criadora. É fazer malabarismo com os conceitos considerar a negação do passado como similar à consciência do presente. "Hoje" está entre "ontem" e "amanhã", não tem outro significado e é o vínculo entre o passado e o futuro. O presente representa um processo de transição e, neste sentido, o homem que é consciente disto, pode chamar-se moderno.

Muitos creem modernos, especialmente os pseudomodernos. Por conseguinte, o homem realmente moderno com frequência encontra-se entre aqueles que creem antiquados. Toma essa posição por razões válidas. Por um lado realça o passado com o fim de minimizar a ruptura com esse passado e o conceito de pesadelo a que me referi.

Toda qualidade boa tem seu lado mau e nada bom pode vir ao mundo sem produzir diretamente um correspondente mal. Este é um fato doloroso. Agora existe o perigo que a consciência do presente possa conduzir a um envaidecimento baseado na ilusão: a ilusão de que somos, em particular, a culminação da história da humanidade, a realização e o produto final de incontáveis séculos.

Se admitíssemos isto, compreenderíamos que não é mais que o orgulhoso conhecimento da nossa indigência. Somos também o desengano das esperanças e expectativas das épocas. Recordem que depois de dois mil anos de ideais cristãos sobreveio, no lugar do retomo do Messias e do milênio celestial, a Guerra Mundial, travada entre nações cristãs, com todos os seus horrores. Que catástrofe no céu e na terra!

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