Paradoxo do Progresso Ilimitado das Ciências
Fulcanelli

A todos os filósofos, às gentes instruídas quaisquer que sejam, aos sábios especializados e aos simples observadores, permitimo-nos fazer esta pergunta:

“Por acaso já refletistes nas consequências fatais que resultarão dum progresso ilimitado?”.

Já por causa da multiplicidade de conquistas científicas, o Homem só consegue viver à custa de energia e de resistência, num ambiente de atividade trepidante, febril e malsã. Criou a máquina que centuplicou os seus meios e o seu poder de ação, mas tornou-se escravo e vítima dela: escravo durante a paz, vítima durante a guerra. A distância deixou de ser obstáculo para ele; transporta-se com rapidez dum ponto a outro do Globo, por via aérea, marítima e terrestre. Não vemos, porém, estas facilidades de deslocação tornarem-no melhor ou mais feliz; pois se o adágio pretende que as viagens formam a juventude, não parece que contribuam para fortalecer os laços de concórdia e fraternidade que deviam unir os povos. Nunca as fronteiras foram mais guardadas do que hoje. O Homem possui a maravilhosa faculdade de exprimir o seu pensamento e de fazer ouvir a sua voz até às mais longínquas regiões; e, no entanto, esses mesmos meios impõem-lhe novas necessidades. Pode emitir e registrar as vibrações luminosas e sonoras, sem com isso ganhar mais do que uma vã satisfação de curiosidade, senão uma sujeição pouco favorável à sua elevação intelectual. Os corpos opacos tornaram-se permeáveis a seu olhar, e, se lhe é possível sondar a matéria grave, em compensação que sabe ele de si mesmo, quer dizer da sua origem, da sua essência e do seu destino?

Aos desejos satisfeitos sucedem outros desejos insaciados. Insistimos nisto: o Homem quer andar depressa, cada vez mais depressa, e esta agitação torna insuficientes as possibilidades de que ele dispõe. Arrebatado pelas suas paixões, as suas cobiças e as suas fobias, o horizonte das suas esperanças recua indefinidamente. É a doida corrida para o abismo, a constante usura, a atividade impaciente, furiosa, aplicada sem trégua nem repouso. “Na nossa época, disse com inteira justeza Júlio Simon, temos de caminhar ou correr: quem para está perdido.” Com esta cadência, com este regime, a saúde física periga. Apesar da difusão e observação das regras de higiene, de medidas profiláticas, a despeito de inumeráveis processos terapêuticos e da acumulação de drogas químicas, a doença prossegue nos seus estragos com incansável perseverança. E, por sinal, a luta organizada contra os flagelos conhecidos parece ter só como resultado fazer dali surgir outros, novos, mais graves e mais refratários.

A própria natureza dá inequívocas notícias de cansaço: torna-se preguiçosa. À força de adubos químicos, o agricultor obtém agora colheitas de valor mediano. Interroguem um camponês e ele dirá que “a terra está a morrer”, que as estações andam trocadas e que mudou o clima. Tudo o que vegeta sofre de falta de seiva e de resistência. As plantas definham - é um fato verificado oficialmente - e mostram-se incapazes de reagir contra a invasão dos insetos parasitas ou o ataque das doenças de micélio.

Enfim, não damos novidade alguma ao dizer que a maior parte das descobertas, orientadas de começo para o acréscimo do bem-estar humano, são rapidamente desviadas da sua finalidade e aplicadas, especialmente na destruição. Os instrumentos de paz mudam-se em engenhos de guerra e bem se conhece o papel preponderante que a ciência desempenha nas conflagrações modernas. Tal é, ai de nós!, o objetivo final, o resultado da investigação científica; e tal é também a razão pela qual o homem que a prossegue com esta intenção criminosa invoca sobre si a justiça divina e se vê necessariamente condenado por ela.

A fim de evitar a acusação (que, apesar disso, lhes foi feita) de perverter os povos, os Filósofos recusaram-se sempre a ensinar claramente as verdades que tinham adquirido ou recebido da antiguidade. Bernardino de Saint-Pierre mostra conhecer esta regra de sabedoria quando declara, ao fim da Chaumière Indienne (Cabana Indiana): “Deve-se procurar a verdade com um coração simples; será encontrada na natureza; não se deve dizê-la senão à gente de bem.” Por ignorância ou desprezo desta condição prévia, o exoterismo lançou a desordem no seio da humanidade.

O Reino do Homem

O Reino do Homem, prelúdio do Juízo Final e da vinda do Ciclo novo, está expresso simbolicamente num curioso quadro de madeira esculpida, conservado na igreja de São Salvador, também chamada do Capítulo, de Fïgeac (Lot). Sob a concepção religiosa velando apenas o seu evidente esoterismo, ele mostra Cristo menino adormecido sobre a cruz e rodeado dos instrumentos da Paixão. Dentre estes atributos de martírio divino, seis foram, intencionalmente, reunidos em X, assim como a cruz onde repousa Jesus infante e que foi inclinada para dar esta forma por perspectiva. Assim, lembrando as quatro idades, temos quatro X (khi) gregos cujo valor numérico de 600 nos fornece, como produto, os 2400 anos do mundo. Ali se vê, pois, a lança de Longino (João, XIX, 34) reunida à cana (Mateus, XXVII, 4S; Marcos, XV, 36) ou cabo de hissope encimado pela esponja embebida em oxicrato (João, XIX, 34); depois, o feixe de vergastas e o flagelo entrecruzados (João, XIX, 1; Mateus, XXVII, 26; Marcos, XV, 15); por fim, o martelo que serve para enterrar os pregos da crucificação e a torquês utilizada para os arrancar após a morte do Salvador.

Tripla imagem da última irradiação, fórmula gráfica do espiritualismo declinante, estes X marcam com o seu cunho o segundo período cíclico, ao fim do qual a humanidade se debate nas trevas e na confusão, até ao dia da grande revolução terrestre e da morte libertadora. Se reunirmos estas três cruzes em aspa e colocarmos o ponto de intersecção dos seus braços sobre um eixo comum, obteremos uma figura geométrica de doze raios, simbolizando os doze séculos que constituem o Reino do Filho do Homem e que sucedem aos doze precedentes do Reino de Deus.

O Dilúvio

Quando o povo fala do fim do mundo evoca e traduz geralmente a ideia dum cataclismo universal, levando simultaneamente à ruína total do Globo e ao extermínio dos seus habitantes. Segundo esta opinião, a Terra, cortada do número dos planetas, deixaria de existir. Os seus destroços, projetados no espaço sideral, cairiam em chuva de aerólitos sobre os mundos próximos do nosso.

Certos pensadores, mais lógicos, tomam a expressão num sentido mais restrito. No seu parecer, a perturbação não deverá atingir senão a humanidade. Afigura-se-lhes impossível admitir que o nosso planeta desapareça, embora tudo o que vive, se move e gravita à sua superfície esteja condenado a perecer. Tese platônica que podia ser aceitável, se não implicasse a introdução irracional dum fator prodigioso: o homem renovado nascendo diretamente do solo, à maneira de um simples vegetal e sem semente prévia.

Não é assim que se deve entender o fim do mundo, tal como nos é anunciado nas Escrituras e tal como o relatam as tradições primitivas, quaisquer que sejam as raças a que pertençam. Quando Deus, para punir a humanidade dos seus crimes, resolveu sepultá-la sob as águas do dilúvio, não só a Terra foi afetada à superfície, apenas, mas também certo número de homens justos e de eleitos, havendo achado graça diante d'Ele, sobreviveram à inundação.

Embora apresentado sob aparências simbólicas, este ensinamento assenta numa base positiva. Reconhecemos ali a necessidade física duma regeneração animal e terrestre que não pode, pois, levar ao aniquilamento total das criaturas, nem suprimir qualquer das condições indispensáveis à vida do centro, do núcleo salvaguardado. Portanto, apesar da sua aparente universalidade, apesar da terrificante e longa agitação dos elementos desencadeados, estamos seguros de que a imensa catástrofe não agirá igualmente por todo o lado, em tudo, nem sobre toda a extensão dos continentes e dos mares. Certas regiões privilegiadas, verdadeiras arcas rochosas, abrigarão os homens que ali se refugiarem. Ali, durante um dia, com a duração de dois séculos, gerações assistirão - angustiadas espectadoras dos efeitos do poderio divino - ao duelo gigantesco da água e do fogo; numa calma relativa, sob uma temperatura uniforme, à pálida e constante claridade dum céu baixo, o povo eleito esperará que se faça a paz, que, dispersas as últimas nuvens ao sopro da idade de ouro, a magia policroma do duplo arco-íris lhe descubra o fulgor de novos céus e o encanto duma nova terra...

Pela nossa parte, que nunca nos prendemos com os argumentos do racionalismo, consideramos que o dilúvio moisaico é incontestável e real. Sabemos, aliás, quanto a Bíblia é superior aos outros livros, como ela continua a ser o Livro eterno, imutável, o Livro cíclico por excelência, onde, sob véu parabólico, a revelação da história humana está selada, aquém e mesmo além dos próprios anais dos povos. É a narração in-extenso do périplo que cada grande geração cíclica executa. E, como a história é um perpétuo recomeço, a Bíblia que lhe descreve o processo figurado permanecerá para sempre como a única fonte, a autêntica compilação dos acontecimentos históricos e das revoluções humanas, tanto para os períodos transatos como para aqueles que se sucederão no porvir.

A nossa intenção não é empreender aqui uma refutação dos argumentos com que os adversários da tradição de Moisés contestaram a exatidão do seu testemunho, nem fornecer aqueles pelos quais os defensores da religião revelada estabeleceram a autenticidade e a inspiração divina dos seus livros. Tentaremos só mostrar que o fato do dilúvio é confirmado pelas tradições particulares de todos os povos, tanto do antigo como do novo continente.

Os livros sagrados dos Hindus e dos Iranianos fazem menção ao dilúvio. Na índia, Noé chama-se Vaivaswata ou Satyavrata. As lendas gregas falam de Ogygés e de Deucalião; as da Caldeia, de Xixuthoros ou Sisuthoros; as da China, de Fo-Ri; as dos Peruanos, de Bochica. Segundo a cosmografia assírio-caldaica, os homens, criados por Marduk, tornaram-se maus e o conselho dos deuses resolveu puni-los. Um único homem é justo e, por isso, amada pelo deus Ea: trata-se de Utimapishtim, rei da Babilônia. Assim, Ea revela em sonho a Utmapishtim a vinda iminente do cataclismo e o meio de escapar à cólera dos deuses. O Noé babilônico constrói, pois, uma arca e ali se fecha com todos os seus, família, servidores, artistas construtores da nave e um rebanho inteiro de animais. Logo depois, as trevas invadem o céu. As águas do abismo tombam e cobrem a terra. A arca de Utmapishtim voga durante sete dias e detém-se enfim no topo duma montanha. O justo salvado larga uma pomba e uma andorinha, as quais voltam à barca, depois um corvo, que não regressa. Então, sai da arca e oferece um sacrifício aos deuses. Para os Astecas e outras tribos que habitavam no planalto do México, é Coxcox ou Tezpi que desempenha o papel do Noé bíblico...

O dilúvio moisaico teve a mesma importância, a mesma extensão, as mesmas repercussões que todas as inundações que o precederam. É, de algum modo, a descrição típica das catástrofes periódicas provocadas pela mudança dos polos. É a interpretação esquematizada dos sucessivos dilúvios de que Moisés tivera, sem dúvida, conhecimento, quer fosse testemunha ocular dum deles - o que justificaria o seu próprio nome -, quer o obtivesse por revelação divina. A arca salvadora parece-nos que representa o lugar geográfico onde se juntam os eleitos quando a grande perturbação se aproxima, em vez de uma nave fabricada pela mão do homem. Pela sua forma, a arca revela-se já como uma figura cíclica e não como um vaso (navio) verdadeiro. Num texto onde devemos, especialmente, segundo a palavra das Escrituras, considerar o espírito, de preferência à letra, é-nos impossível tomar em sentido literal a construção do navio, a procura de “todos os animais puros e impuros” e a sua reunião aos pares. Uma calamidade que impõe, durante dois séculos, a seres vivos e livres, condições tão diferentes de “habitat”, tão contrárias às suas necessidades, ultrapassa os limites da nossa razão. Não devemos esquecer que, durante toda a prova, o hemisfério, entregue ao afluxo das águas, está mergulhado na mais completa obscuridade. Convém saber, efetivamente, que Moisés fala de dias cíclicos, cujo valor secreto equivale aos anos correntes. Precisemos: Está escrito que a chuva diluviana dura quarenta dias e que as águas cobrem a Terra durante cento e cinquenta dias, ou seja cento e noventa dias no total. Deus fez então soprar um vento quente, e o nível do lençol líquido desce. A arca aporta o monte Ararat (*1), na Armênia. Noé abre a janela (o regresso da luz) e liberta um corvo que, retido pelos cadáveres, não volta. A seguir, Noé solta a pomba, que retorna logo à arca, pois nesse momento as árvores ainda estavam submersas. O patriarca aguarda, portanto, sete dias e faz sair outra vez a ave que regressa à tardinha trazendo um ramo verde de oliveira. O dilúvio acabara. Tinha durado cento e noventa e sete dias cíclicos ou, com diferença de três anos, dois séculos reais.

Poderemos admitir que um navio, exposto tanto tempo à tormenta, seja capaz de lhe resistir? E, por outro lado, que pensar da sua carga? Estas inverosimilhanças não conseguem, apesar de tudo, abalar a nossa convicção. Consideramos, pois, a narração moisaica verdadeira e positiva quanto ao fundo, quer dizer, quanto ao fato do dilúvio; mas a maior parte das circunstâncias que o acompanham, especialmente as que dizem respeito a Noé, à arca, à entrada e saída dos animais, são nitidamente alegóricas. O texto encerra um ensino esotérico de considerável alcance. Notemos simplesmente que Noé - que tem o mesmo valor cabalístico que Noël (Natal, em grego Νώε) - é uma contração de NέοςΉλιος, o novo sol. A arca, Άρχη, indica o começo duma era nova. O arco-íris marca a aliança que Deus faz com o homem no ciclo que se abre; é a sinfonia renascente ou renovada: Συμφουία, consentimento, acordo, união, pacto. É também a Cintura de Íris (Ζώυη), a zona privilegiada...

O Apocalipse de Esdras informa-nos sobre o valor simbólico dos livros de Moisés: “Ao terceiro dia, quando eu estava debaixo duma árvore, chegou até mim uma voz do lado desta árvore, dizendo-me: Esdras, Esdras! Respondi: Aqui estou; levantei-me e pus-me de pé. A voz recomeçou: Apareci a Moisés e, da sarça, falei-lhe, quando o meu povo estava escravo no Egito. Enviei-o como mensageiro; fiz sair o meu povo do Egito, conduzi-o ao Monte Sinai e largo tempo o mantive junto de mim. Contei-lhe bastantes maravilhas; ensinei-lhe o mistério dos dias; dei-lhe a conhecer os últimos tempos; e ordenei.lhe: Conta isto, esconde aquilo.” (*2)

Mas se considerarmos, apenas, o fato do dilúvio, seremos levados a reconhecer que tal cataclismo teve de deixar traços profundos da sua passagem e de modificar um pouco a topografia dos continentes e dos mares. Seria erro grave acreditar que o perfil geográfico de uns e de outros, a sua situação recíproca, a sua repartição à superfície do globo, eram semelhantes, há uns vinte e cinco séculos, àqueles que são hoje. Apesar do nosso respeito pelos trabalhos dos sábios que se têm ocupado dos tempos pré-históricos, também não devemos aceitar, senão com a maior reserva, os mapas da época quaternária reproduzindo a atual configuração do Globo. É evidente, por exemplo, que, durante muito tempo, esteve submersa uma importante parte do solo francês, coberto de saibro marinho, abundantemente provido de conchas, de calcários com marcas de amonitas (amonites). Lembremos também que a ilha de Jersey ainda estava ligada ao Cotentin em 700, ano em que as águas da Mancha invadiram a vasta floresta que se estendia até Ouessant e servia de abrigo a numerosas aldeias.

A História conta que os Gauleses, interrogados a respeito do que mais lhes poderia causar terror, costumavam responder: “Só receamos uma coisa, é que o céu nos caia em cima da cabeça.” Mas este dito, que se dá como prova de ousadia e bravura, não esconderia outra razão completamente diferente? Em vez duma simples bravata, não se trataria antes da persistente memória dum acontecimento real? Quem ousaria afirmar que os nossos antepassados não foram horrorizadas vítimas do céu a desabar em formidáveis cataratas, entre as trevas duma noite que durou várias gerações?

Atlântida

Esta ilha misteriosa, de que Platão nos deixou descrição enigmática, existiu ou não? Problema difícil de resolver, em face da fraqueza dos meios que a ciência possui para penetrar no segredo dos abismos. Certas verificações parecem, todavia, dar razão aos partidários da realidade atlântida. Com efeito, sondagens, operadas no oceano Atlântico, permitiram trazer à superfície fragmentos de lava cuja estrutura prova irrefutavelmente que ela cristalizou ao ar. Parece, portanto, que os vulcões ejetores desta lava se erguiam então sobre terras ainda não submersas. Também se julgou descobrir um argumento, próprio a justificar a asserção dos sacerdotes egípcios e a narrativa de Platão, na particularidade de a flora da América Central se mostrar semelhante à que em Portugal existe; as mesmas espécies vegetais, transmitidas pelo solo, indicariam uma relação continental estreita entre o antigo e o novo mundo. Quanto a nós, não vemos nada de impossível em que a Atlântida tenha ocupado um lugar importante entre as regiões habitadas, nem em que a civilização se desenvolvesse até atingir esse alto grau que Deus parece haver fixado como termo ao progresso humano: “Não irás mais longe.” Limite para além do qual os sintomas da decadência se manifestam, a queda se acentua, quando a ruína não é precipitada pela súbita irrupção dum flagelo imprevisto.

A fé na veracidade das obras de Platão leva à crença nas realidades das subversões periódicas de que o dilúvio moisaico permanece, como dissemos, símbolo escrito e protótipo sagrado. Aos negadores da confidência que os sacerdotes do Egito fizeram a Sólon pediremos, apenas, que nos expliquem o que pretende o mestre de Aristóteles revelar com esta ficção de caráter sinistro. Pensamos, com efeito, que, sem dúvida alguma, Platão se fez o propagador de verdades muito antigas e que, por consequência, os seus livros contêm todo um conjunto, um corpo de conhecimentos ocultos. O seu Número geométrico, a sua Caverna, têm o seu significado; porque é que o mito da Atlântida não terá o seu?

A Atlântida sofreu, com certeza, a sorte comum; e a catástrofe que a submergiu depende, evidentemente, duma causa idêntica à que submergiu, quarenta e oito séculos mais tarde, sob um profundo lençol de água, o Egito, o Saara e as regiões da África Setentrional. Mais favorecido, porém, do que a terra dos Atlântidas, o Egito beneficiou dum levantamento do fundo submarino e voltou à luz do dia, após certo tempo de imersão. Porque a Argélia e a Tunísia, com os seus xotes secos e revestidos duma espessa camada de sal; o Saara e o Egito, com o seu solo constituído, na maior parte, de areia marinha, mostram que as ondas invadiram e cobriram vastas extensões do continente africano. As colunas dos templos faraônicos ostentam inegáveis rastos de imersão; nas salas hipostilo, as lajes, ainda existentes, que formam os seus tetos, foram soerguidas e deslocadas sob a influência do movimento oscilatório das vagas; a desaparição das juntas das pedras (colossos de Memnon, outrora cantados); os traços evidentes de corrosão pelas águas que se notam na esfinge de Gisé, assim como em numerosas outras obras da estatuária egípcia, não têm outra origem. É provável, aliás, que a casta sacerdotal não ignorasse o destino que estava reservado à sua pátria. Talvez seja o motivo de os hipogeus reais serem profundamente talhados na rocha e as suas aberturas hermeticamente seladas. Não se poderá mesmo reconhecer o efeito desta crença em um futuro dilúvio na travessia obrigatória que a alma do defunto tinha de fazer após a morte corporal e que justificava a presença, entre tantos outros símbolos, dessas pequenas barcas aparelhadas, flotilhas em redução, que fazem parte do mobiliário funerário das múmias dinásticas?

De qualquer modo, o texto de Ezequiel (*3), que anuncia a desaparição do Egito, é formal e não se pode prestar a equívoco:

“... cobrirei o Sol de nuvens e a Lua deixará de dar luz. Farei escurecer sobre ti todos os astros que dão luz nos céus e porei trevas no teu país, disse o Senhor, o Eterno. E farei estremecer o coração de vários povos, quando Eu trouxer a notícia da tua ruína entre as nações, nos países que não conheceste... Quando Eu tiver reduzido à desolação o país do Egito, e quando o país estiver desprovido de tudo quanto o enchia, quando Eu tiver ferido todos que lá habitam, então saberão que sou o Eterno.”

O Abrasamento

A história cíclica abre-se, no capítulo VI do Gênesis, com a narração do Dilúvio; termina, no capítulo XX do Apocalipse, com as chamas ardentes do Juízo Final. Moisés, salvo das águas, escreve o primeiro; S. João, figura sagrada da exaltação solar, fecha o livro com os selos do fogo e do enxofre.

Em Melle (Deux-Sèvres), pode admirar-se o cavaleiro místico de que fala o visionário de Patmos, esse cavaleiro que deve chegar na plenitude da luz e surgir do fogo, à maneira de puro espírito. É uma grave e nobre estátua que, sob uma arcada de volta inteira da Igreja de São Pedro, se ergue por cima do pórtico sul, sempre submetida, por causa da sua orientação, aos raios do sol. O arco e a coroa são-lhe entregues no meio da inefável glória divina, cujo brilho fulgurante consome tudo o que ilumina. Se o nosso cavaleiro não mostra a arma simbólica, está, porém, toucado com o sinal de toda a realeza. A sua atitude rígida, a sua alta estatura, anunciam o poderio, mas a expressão da fisionomia parece repassada de certa tristeza. Os traços do rosto aproximam-no singularmente de Cristo, do Rei dos Reis, do Senhor dos Senhores, deste Filho do Homem que, no dizer de Lentulus, nunca alguém viu rir, embora bastas vezes o vissem chorar. E compreendemos que não seja sem melancolia que ele volta aqui abaixo, aos lugares da sua Paixão, ele, o eterno enviado de seu Pai, para impor ao mundo pervertido a última prova e para “ceifar”, impiedosamente, a vergonhosa humanidade. Esta humanidade, madura para o supremo castigo, está figurada pela personagem que o cavalo derruba e calca, sem que o condutor mostre a menor preocupação com isso (*4).

Cada período de mil e duzentos anos começa e acaba por uma catástrofe; a evolução humana estende-se e desenvolve-se entre dois flagelos. A água e o fogo, agentes de todas as mutações materiais, operam juntos, durante o mesmo tempo e cada um numa região terrestre oposta. E, como a deslocação solar - quer dizer, a ascensão do astro ao zênite do polo - é o grande motor desta conflagração elementária, resulta daí que o mesmo hemisfério é, alternativamente, submerso ao fim de um ciclo e calcinado ao cabo do ciclo seguinte. Enquanto o sul é submetido aos ardores conjugados do sol e do fogo terrestre, o norte sofre a constante afusão das águas meridionais, vaporizadas no seio da fornalha e depois condensadas em nuvens enormes, rechaçadas constantemente. Ora, como as águas do dilúvio afundaram o nosso hemisfério setentrional, no ciclo precedente, devemos pensar que as chamas do Juízo Final o consumirão, nos derradeiros dias deste ciclo.

Devemos aguardar com sangue-frio a hora suprema; a do castigo para muitos, do martírio para alguns.

De modo sucinto, mas bastante claro, o grande iniciado cristão São Pedro sublinha exatamente a diferença oferecida pelos dois cataclismos sucedendo-se no mesmo hemisfério, quer dizer no nosso, para o presente caso: “Sabei, antes de tudo, que nos últimos dias virão escarnecedores e impostores, caminhando segundo as suas próprias concupiscências, e que dirão: Onde está a promessa da sua vinda? Pois, desde que os nossos pais morreram, todas as coisas permanecem como desde o princípio da criação. Por voluntária ignorância não consideram que, pela palavra de Deus, foram feitos primeiro os céus, assim como a terra que foi tirada da água e que no meio da água subsiste; e que foi por estas mesmas coisas que pereceu o mundo de então, submergido pelo dilúvio das águas. Ora, os céus e a terra de agora estão cuidadosamente guardados pela mesma palavra e estão reservados para o fogo, no dia do Juízo e da ruína dos ímpios... Pois, como um ladrão vem durante a noite, assim o dia do Senhor virá de súbito; e, então, no grande estrondo (duma terrível tempestade) os céus passarão, os elementos ardendo se desfarão e a Terra será queimada com todas as obras que contém... Esperamos, segundo a Sua promessa, novos céus e nova Terra, nos quais a justiça habitará.” (*5)

O obelisco de Dammartin-sous-Tigeaux (Seine-et-Marne) é a imagem sensível, expressiva, absolutamente conforme à tradição, da dupla calamidade terrestre, do abrasamento e do dilúvio, no dia terrível do Juízo Final.

Erigido sobre um cabeço, no ponto cimeiro da floresta de Crécy (altitude: 134 metros), o obelisco domina os arredores e, pelas abertas dos caminhos florestais, vê-se desde longe. A sua colocação foi, aliás, admiravelmente escolhida. Ocupa o centro duma encruzilhada geometricamente regular, formada pela intersecção de três estradas que lhe dão o aspecto irradiante duma estrela de seis pontas (*6). Assim, este monumento aparece edificado sobre o plano do antigo hexagrama; figura composta do triângulo da água e do fogo, a qual serve de assinatura à Grande Obra física e ao seu resultado, a Pedra Filosofal.

Este monumento, de belo porte, compõe-se de três partes distintas: um soclo robusto, oblongo, de secção quadrada e ângulos arredondados; um fuste, constituído de uma pirâmide quadrangular de arestas chanfradas; enfim, um pináculo no qual está concentrado todo o interesse da construção. Efetivamente, mostra o globo terrestre entregue às forças reunidas da água e do fogo. Repousando sobre as vagas do mar em fúria, a esfera do mundo, batida, no polo superior, pelo Sol na sua viragem helicoidal, abrasa-se e projeta clarões e raios. Como já dissemos, é a impressionante figuração do incêndio e da inundação imensas, igualmente purificadoras e justiceiras.

Duas faces da pirâmide estão orientadas exatamente segundo o eixo norte-sul da estrada nacional. Sobre o lado meridional, nota-se a imagem dum velho carvalho esculpido em baixo-relevo. Diz Pignard-Péguet (*7) que este carvalho encimava “uma inscrição latina” agora picada. As outras faces ostentavam, gravadas em escavado, um cetro numa delas, uma mão de justiça na outra, um medalhão com as armas do rei na última.

Se interrogarmos o carvalho de pedra, ele pode responder-nos que os tempos estão próximos, porque ele é o seu presságio figurado. É o eloquente símbolo do nosso período de decadência e perversão; e o iniciado a quem devemos o obelisco teve o cuidado de escolher o carvalho para frontispício da sua obra, ao jeito de prólogo cabalístico encarregado de situar, no tempo, a época nefasta do fim do mundo. Esta época que é a nossa tem as suas características claramente indicadas no vigésimo quarto capítulo do Evangelho segundo São Mateus, quer dizer segundo a Ciência: “ouvireis falar de guerras e de rumores de guerra... Haverá pestes e fomes e terremotos, em vários lugares. Mas todas estas coisas são o princípio das dores.” Estes abalos geológicos frequentes, acompanhados de modificações climatéricas inexplicáveis, cujas consequências se propagam nos povos que comovem e entre as sociedades a que perturbam, são simbolicamente expressos, pelo carvalho (“chêne”). Esta palavra, chiada na sua pronúncia francesa, corresponde foneticamente ao grego Χήυ, Khên, e designa o ganso (“oie”) vulgar. O velho carvalho (“vieux chêne”) toma, por esse fato, o mesmo valor do que a expressão velho ganso (“vieille oie”) e o sentido secreto de velha lei (“vieille loi”), anunciadora do regresso da antiga Aliança ou do Reino de Deus.

Os Contos da Mãe Ganso, Contes de ma mère l’Oie (“loie mère”), lei mãe, lei primitiva) são narrativas herméticas onde a verdade esotérica se mistura com o cenário maravilhoso e legendário das Saturnais, do Paraíso ou da Idade de Ouro.

A Idade de Ouro

No período da Idade de Ouro, o homem, renovado, ignora qualquer religião. Rende, apenas, graças ao Criador, de que o Sol, a sua mais sublime criação, lhe parece refletir a imagem ardente, luminosa e benfazeja. Respeita, honra e venera Deus neste globo radiante que é o coração e o cérebro da natureza e o dispensador dos bens da terra. Representante visível do Eterno, o Sol é também o testemunho sensível do seu poderio, da sua grandeza e da sua bondade. No seio do brilho do astro, sob o céu puro duma terra rejuvenescida, o Homem admira as obras divinas, sem manifestações exteriores, sem ritos e sem véus. Contemplativo, ignorando a necessidade, o desejo e o sofrimento, guarda ao Mestre do Universo este reconhecimento comovido e profundo que as almas simples possuem e este afeto sem limites que liga o filho ao Pai. A Idade de Ouro, idade solar por excelência; tem como símbolo cíclico a própria imagem do astro, hieróglifo empregue em todos os tempos pelos antigos alquimistas, a fim de exprimir o ouro metálico ou sol mineral. No plano espiritual, a Idade de Ouro é personificada pelo evangelista S. Lucas. O grego Λουχας, de Λύχυος, luz, lâmpada, archote (latim lux, lucis), leva-nos a considerar o Evangelho segundo S. Lucas como o Evangelho segundo a luz. É o Evangelho solar que traduz, esotericamente, o trajeto do astro e o dos seus raios, regressados ao seu primitivo estado de esplendor. Marca o início duma nova era, a exaltação do poder radiante sobre a terra regenerada e o recomeço do orbe anual e cíclico (Λυχάζας, nas inscrições gregas, significa ano). São Lucas tem como atributo o touro ou boi alado, figura solar espiritualizada, emblema do movimento vibratório, luminoso e reconduzido às condições possíveis de existência e de desenvolvimento dos seres animados.

Esse tempo feliz e bendito da Idade de Ouro, durante o qual viveram Adão e Eva no estado de simplicidade e de inocência, é designado sob o nome de Paraíso terrestre. A palavra grega Παράδεισος, paraíso, parece derivar da raiz persa ou caldaica Pardés, que quer dizer jardim delicioso. Pelo menos é neste sentido que o encontramos empregado pelos autores gregos - Xenóforas e Diodoro de Sicília, particularmente -, para qualificar os magníficos jardins que os reis da Pérsia possuíam. O mesmo significado é aplicado pelos Setenta, na sua tradução do Gênesis (cap. II, V. 8), à maravilhosa morada dos nossos primeiros pais. Tem-se buscado encontrar qual fosse a parte geográfica do Globo onde Deus colocara esse Éden de encantador enquadramento. As hipóteses não concordam entre si, neste ponto; assim, certos escritores, como Filão, o judeu, e como Orígenes, cortam o debate, pretendendo que o Paraíso terrestre, tal como o descreve Moisés, nunca teve existência real. Segundo eles, conviria entender em sentido alegórico tudo o que as Santas Escrituras contam a tal respeito.

Não obstante, consideramos exatas todas as descrições que foram feitas do Paraíso terrestre ou, se preferirem, da Idade de Ouro; mas não nos deteremos nas diferentes teses visando provar que o espaço de refúgio, habitado pelos nossos antepassados, se encontrava localizado numa região definida. Se, propositadamente, não determinamos onde ele se situava, é pelo simples motivo de, em cada revolução cíclica, só existir uma estreita cintura que é respeitada e que permanece habitável, nas suas partes terrestres. No entanto, voltamos a insistir: a zona de salvação e de misericórdia ora se encontra no hemisfério boreal, no começo dum ciclo, ora se encontra no hemisfério austral, no começo do ciclo seguinte.

Resumamos. A Terra, como tudo o que vive dela, nela e por ela, tem o seu tempo previsto e determinado, as suas épocas evolutivas rigorosamente fixadas, estabelecidas, separadas por outros tantos períodos inativos. Está, pois, condenada a morrer, a fim de renascer; e estas existências temporárias, compreendidas entre a sua regeneração ou nascimento e a sua mutação ou morte, foram chamadas Ciclos pela pluralidade dos antigos filósofos. O ciclo é, por conseguinte, o espaço de tempo que separa duas convulsões terrestres da mesma ordem, as quais se cumprem como resultado duma revolução completa deste Grande Período circular, dividido em quatro épocas de igual duração, que são as quatro Idades do mundo. Estas quatro divisões da existência da Terra sucedem-se conforme o ritmo daquelas que compõem o ano solar: Primavera, Verão, Outono e Inverno. Assim, as idades cíclicas correspondem às estações do movimento solar anual; e o seu conjunto recebeu as denominações de Grande Período, Grande Ano e, mais frequentemente ainda, de Ciclo Solar.

_________________________

Notas:

(*1) Em grego Λραρα ou Λρηρα perfeito de άραρίσχω significa estar ligado, fixo, parado, firme, imutável.

(*2) René Basset, Apocryphes Ethiopiens, Paris, Bibliothèque de la Haute Science, 1899, cap. XIV, vers. 1 a 6.

(*3) Ezequiel cap. XXXII. Lamentação pelo Egito (vers. 7. 8. 9 e 15).

(*4) A estátua equestre desenhada por Julião Champagne, ao começo do Verão de 1919, está agora mutilada em parte. O cavaleiro perdeu o pé direito, enquanto que o cavalo, sem dúvida por causa do mesmo choque, se encontra amputado, à dextra igualmente, da perna da frente, que ele erguia, fazendo piafé.

(*5) Segunda Epístola, III.

(*6) A agradável decoração que rodeia o obelisco e que está agora eriçada de vasos e placas oferece impressionante exemplo das fantasias dum urbanismo a maior parte das vezes absurdo e importuno.

(*7) Histoire générale illustrée des Départements. Beine-et-Marne. Orléans, August Goüt et Cie, 1911, pág. 249.

Trecho do livro “As Mansões Filosofais” - “Les Demeures Philosophales” - de Fulcanelli, publicado em 1929 (trecho extraído da Terceira Edição de 1965 - "Edições 70" - Lisboa.

Início