A Outra Margem do Rio
Augusto Queiroz

“O Rio da Verdade corre sobre um leito de mentiras”. O velho anacoreta leu a mensagem e continuou seu caminho, procurando uma ponte que o levasse de um lado a outro do rio. Assim evitaria o lodo e a sujeira do seu leito e as fortes correntezas que não admitem a fraqueza e a indefinição e requerem braços fortes e sentimentos puros.

Nem forte nem puro era o velho, daí porque procurava uma ponte através da qual pudesse passar em segurança para a outra margem, evitando assim a dicotomia aberta entre a terra e o céu, o bem e o mal, o falso e o verdadeiro.

Rio caudaloso, engrossado por fortes chuvas, parecia não haver em suas margens qualquer ponte, ou mesmo tronco abandonado que permitisse a um caminhante atravessar as suas águas sem temor.

Sob um sol causticante e sem esperar consolo, o velho peregrino continuava sua busca, tendo percorrido já a nascente e a foz, os portos ribeirinhos e as corredeiras caudalosas que formavam o rio, sem achar em lugar algum um meio para transpor o obstáculo.

- Se eu fosse um anjo, poderia voar..., pensou o velho. Mas, não, não era anjo, muito menos criança ou criatura de alma pura que pudesse, em sonho e em leveza, ser transportado para a outra margem. Era de fato um velho, de corpo rígido e alquebrado, que o tempo e os anos se encarregavam de enferrujar cada vez mais. Um velho teimoso, como se haveria de supor, e obstinado em sua busca.

Conhecera e enfrentara muitas dificuldades, toda a sua vida fora de luta e agora, já próximo da morte, buscava lograr, como desafio final, a travessia do Rio da Verdade que – assim imaginava – o conduziria de forma mágica a uma comprovação tautológica da Eternidade e à demonstração visível de todos os infinitos.

Essa vã esperança fazia com que não desanimasse e persistisse sempre em sua busca, apesar das dificuldades. Tinha espírito guerreiro e determinação aguerrida e parecia não estar disposto a aceitar facilmente o fracasso, ainda que a sua procura o conduzisse à morte, ao desespero ou à loucura.

Habituara-se ao rio e ao seu fluir contínuo, às águas que passam, sem esperar retorno. “Assim como é o rio, deve ser a vida”, filosofou o velho, num final de tarde especialmente bonito. “Fluindo, sempre, sem se deter em um ponto sequer do caminho, rumo ao cada vez mais próximo e indefinível mar”...

Essa teoria do retorno lhe fez pensar na doutrina da transmigração das almas, tal como ensinada pela Escola Peripatética de Aristóteles e pelos epicuristas e reforçada por Buda. Tal pensamento o levou a identificar, na prática da virtude e na cultura do espírito, um bem soberano corroborado pela razão, o que por si só justificaria todo o esforço e a labuta humana.

Compreensão que, por fim, o levou a perceber que já não havia ponte nem rio, nem diferença entre uma e outra margem. Que tudo era e seria sempre parte de um Todo indivisível e que o que buscava era e seria sempre uma ilusão. E que a comprovação tautológica da Eternidade e a demonstração visível de todos os infinitos estava e estivera desde sempre ao seu alcance, bastando apenas que houvesse uma mudança de enfoque em sua mente para que a realidade fosse apreendida de forma holística e integradora, já que a ponte final e ansiada teria que ser construída primeiro em sua própria consciência.

Chegara, enfim, à outra (à mesma) margem.

_________________

Augusto Queiroz é jornalista e tradutor, poeta nas horas vagas e estudioso de longa data dos ensinamentos dos Mestres da Grande Fraternidade Branca, atualmente desenvolvendo trabalhos nas áreas da Comunicação e espiritualidade em Brasília - DF

Início