O mito da saúde de graça
Guilherme Spadini
Há poucos meses, eu era o psiquiatra de plantão em um pronto-socorro do SUS, quando chegou uma paciente desmaiada. O marido, transtornado e furioso, frustrava minhas esperanças de uma conversa esclarecedora. Bufava e murmurava, mas pouco se fazia entender. Estava indignado. Aos poucos, percebi que ele proferia ameaças: “Se eu cruzo com esse médico na rua, eu dava um tiro”.
O que acontecera é que a senhora desmaiada fazia tratamento psiquiátrico e estava afastada do trabalho há cerca de dois anos. Vinha melhorando, com uso de medicação e psicoterapia, tudo pelo SUS. Naquele dia, porém, tinha tido perícia no INSS. Resultado: o médico perito - era ele o alvo das ameaças - notando a melhora, negou a prorrogação da licença. A paciente chegou em casa já com uma crise de pânico. Chorou, mal conseguia falar, ficou confusa e agitada, “virou os olhos” e desmaiou.
O leitor apressado pode inferir que eu estou prestes a ofender a paciente, atribuindo a ela alguma falha de caráter. Mas, não, de modo algum. Aquela paciente estava em intenso e genuíno sofrimento. Sua reação foi típica, e muito humana. Vejamos: uma senhora de mais de cinquenta anos, com baixo nível educacional e problemas psiquiátricos; quais suas reais perspectivas de ter uma experiência de trabalho saudável e recompensadora? Em um mundo ideal, nada disso precisaria impedi-la de se sentir realizada, é claro. Mas, na dura realidade brasileira, as condições de trabalho, de salário e de crescimento pessoal disponíveis para ela são risíveis. Ter de voltar a trabalhar equivale a uma condenação.
É uma questão de incentivos. Todos nós fazemos escolhas tentando ganhar o máximo possível, com base nas melhores informações disponíveis (que, normalmente, são bem ruins). “Ganhar o máximo possível” não significa só ganhar dinheiro, mas também qualidade de vida, afeto, reconhecimento social, tranquilidade, alívio de culpa, satisfação pessoal. Tudo isso entra em conta quando consideramos diferentes opções, e escolhemos a que nos parece mais atraente.
Essa escolha raramente é consciente. Como no caso dessa paciente, que não estava fingindo, nem sendo preguiçosa. Ela apenas reagiu de forma racional. Trabalhar dá trabalho. Se o ganho total de voltar a trabalhar é muito inferior ao de continuar no INSS, a decisão mais racional é continuar doente. Há algo de perverso nesse mecanismo. Mas não é o médico perito o perverso, como queria o marido. Muito menos a paciente.
Um exemplo diferente para ilustrar o mesmo ponto. Certa vez, em uma reunião do Conselho Popular de Saúde em um grande hospital público de São Paulo, alguns conselheiros levantaram uma questão que me pareceu prosaica, a princípio: “Por que não havia torneiras no banheiro do pronto-socorro?”. Prosaica, talvez, diante das discussões sobre alocação estratégica de recursos que estavam ocorrendo até ali, mas justa. Finda a reunião, fui até a direção do hospital e perguntei. Descobri que, na verdade, as torneiras já tinham sido instaladas quatro vezes nos últimos três meses, mas eram sempre roubadas. Como os óculos de bronze do coitado do Drummond. Aliás, isso me lembra de quando eu era criança, a enorme festa de inauguração do Parque Ecológico do Tietê, e sua lagoa de patos que mal durou uma semana. A Zona Leste inteira comeu pato naquele dia.
Enfim, voltando ao tema da saúde. Meu ponto é: saúde de graça é um mito. Por que? A resposta curta: Porque saúde custa caro. Não estou falando de honorários médicos, exames, remédios, que podem ser custeados pelo Estado. Mas do custo que só você pode pagar. O custo de cuidar de si, das pessoas, dos bens comuns e do meio ambiente. Saúde não é um direito, não pode ser exigido. Saúde é um bem, e deve ser conquistado. Saúde envolve comer bem, praticar esportes, ser produtivo, aprimorar-se. Envolve respirar ar puro, beber água limpa. E, também, ter boas relações, confiar em alguém, saber conversar e dar risadas. Ninguém fica saudável sentado, esperando que saúde lhe seja entregue porque é seu direito. Ter saúde dá trabalho.
O caso da paciente que piora ao ter sua licença revogada ilustra esse ponto. Não é ela quem não quer trabalhar. É preciso entender o que esse caso diz sobre nossa sociedade. Um país mínguo de oportunidades, com economia estagnada, com desemprego subindo, com educação de péssima qualidade, é um país que estimula a doença, não a saúde. Vale mais a pena ser doente, e ser cuidado, do que ser saudável e cuidar. Pode triplicar o orçamento da saúde, não vai adiantar. Não é de mais médicos, nem de mais hospitais, que essa paciente precisa. Mas das condições para ter uma vida digna, que lhe pareça mais atraente que a doença.
Da mesma forma, o caso das torneiras ilustra esse ponto. Quando algo é oferecido de graça, é natural que a demanda se torne infinita. Sejam torneiras, óculos de bronze, patos, ou serviços de saúde; se basta estender a mão e pegar, porque não? O brasileiro tem uma forte noção de direito, sem uma correspondente noção de dever. Pode triplicar o orçamento da saúde, enquanto as pessoas continuarem achando que elas têm o direito de ter saúde, sem o dever de contribuir para isso, não vai adiantar.
Saúde pública funciona bem em alguns, poucos, países. São países em que as pessoas têm uma vivência de comunidade e responsabilidade. Têm saneamento básico, boas escolas, trabalhos decentes com bons salários. Parafraseando o famoso discurso de Kennedy, são países em que as pessoas primeiro se perguntam o que elas devem fazer para contribuir, antes de se perguntarem o que elas têm direito de exigir.
Em uma democracia, o Estado não pode ser mais virtuoso que o povo, já que é o último quem constitui o primeiro. O Brasil precisaria investir menos em saúde se investisse em educação, civismo e autonomia. O Brasil precisa de um povo ativo, produtivo e responsável, e não de um povo doente elegendo políticos para construir hospitais. Pode pôr isso na cabeça: saúde custa caro. E não para o Estado. Para você.
Guilherme Spadini é Psiquiatra e psicoterapeuta formado pela
USP.
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Fonte: Alerta Total – www.alertatotal.net