É Preciso Trazer Deus de Volta à Política
Alexander Soljenitsyn

Qual o papel, a participação justificável e necessária da moralidade na política? Erasmo acreditava que a política é uma categoria da ética e conclamou-a a manifestar impulsos éticos. Mas, é claro, isso foi no século 16. Mais tarde veio o nosso Iluminismo e, no século 18, tínhamos aprendido com John Locke que é inconcebível aplicar termos morais ao Estado e às suas ações. E os políticos, que ao longo da História ficaram muitas vezes livres das incômodas limitações morais, obtiveram assim uma justificativa teórica a mais. Impulsos morais entre os estadistas sempre foram mais débeis que os impulsos políticos, mas em nossa época as consequências de suas decisões aumentaram em grandes proporções.

Critérios morais aplicados ao comportamento de indivíduos, famílias e pequenos círculos não podem certamente ser transferidos em grau idêntico para o comportamento dos Estados e políticos: não existe uma equivalência exata quando a dimensão, o instante propício e as tarefas das estruturas governamentais introduzem certa deformação. Os Estados, no entanto, são governados por políticos, e os políticos são gente comum, cujas ações têm impacto sobre outras pessoas comuns.

Além do mais, as oscilações do comportamento político estão muitas vezes totalmente dissociadas dos imperativos do Estado. Portanto, quaisquer exigências morais impostas por nós aos indivíduos, como o entendimento da diferença entre honestidade, vileza e ludíbrio, entre a magnanimidade, a bondade, a avareza e o mal, precisam em grande parte ser aplicadas à política de países, governos, parlamentos e partidos.

Com efeito, se o Estado e a política partidária e social não se basearem na moralidade, então a humanidade não tem futuro do qual falar. A recíproca é verdadeira: se a política de um Estado ou a conduta de um indivíduo for norteada por um critério moral, isso se revela um comportamento não apenas o mais humano, mas, ao longo prazo, mais prudente, para o futuro de uma pessoa.

No povo russo, esse conceito entendido como ideal a ser buscado, e expresso pelo termo “verdade” (pravda) e pela frase “viver com a verdade” (zhit’po pravde), nunca se extinguiu. E, mesmo no obscuro final do século 19, o filósofo russo Vladimir Solovyov insistiu que, do ponto de vista cristão, a moral e a atividade política estão solidamente interligadas; que a atividade política não pode ser nada além de serviço moral, ao passo que a política, motivada pela simples busca de interesses, carece de todo conteúdo cristão.

Infelizmente, em minha pátria hoje esses eixos morais caíram em desuso até maior do que no Ocidente, e reconheço a vulnerabilidade atual de minha posição ao transmitir tais julgamentos. Quando, naquilo que era então a União Soviética, sete décadas de pressões espantosas foram substituídas por uma súbita liberdade sem peias para agir, em meio à pobreza generalizada, como consequência, muitos foram arrastados ao longo da trilha da imprudência, com a adoção desenfreada dos piores aspectos do comportamento humano. Convém destacar nesta conexão que o aniquilamento não se abateu sobre o povo de nosso país de um modo puramente aleatório, mas visou os que possuem destacadas qualidades intelectuais e morais. Assim, o quadro hoje na Rússia é mais sombrio e mais selvagem do que se fosse simplesmente consequência das debilidades gerais de nossa natureza humana.

Mas não devemos dividir o infortúnio pelos países e nações – cabe a todos nós compartilhar do infortúnio, enquanto nos achamos no fim do segundo milênio do cristianismo. Além do mais, nós devemos abordar tão levianamente este termo – moralidade?

Conselho de Bentham – O século 18 legou-nos o preceito de Jeremy Bentham: moralidade é o que dá prazer ao maior número de pessoas; o homem nunca pode desejar algo que não favoreça a preservação de sua própria existência. E foi assombrosa a sofreguidão com que o mundo civilizado adotou conselho tão conveniente e precioso! O calculismo predomina nas relações profissionais e até se tornou aceito como comportamento normal. Ceder de alguma forma a um oponente ou concorrente é considerado asneira imperdoável da parte que leva vantagem de cargo, poder ou riqueza. A medida última de cada acontecimento, ação ou intenção é puramente legalista. Esta foi criada para servir de obstáculo ao comportamento imoral. E muitas vezes tem êxito, às vezes, sob a forma de “realismo legal”, facilita precisamente tal comportamento.

Só podemos ser gratos porque a natureza humana resiste a essa hipnose legalista, não se permite ser arrastada para a letargia e a apatia espiritual em relação aos infortúnios dos outros. Grande número de ocidentais prósperos responde com emoção e calor à dor e ao sofrimento extremos, doando bens, dinheiro e, com frequência, despendendo esforço pessoal significativo.

Progresso infinito – O conhecimento humano e a capacidade humana continuam sendo aperfeiçoados; não podem e não devem ser interrompidos. No século 18, esse processo começou a se acelerar e a se tornar mais evidente. Anne-Tobert Turgot deu-lhe o sonoro título de progresso, significando que progresso, baseado no desenvolvimento econômico, levaria inevitável e diretamente ao abrandamento geral do temperamento humano.

Esse rótulo pomposo foi amplamente adaptado e evoluiu para algo semelhante a uma filosofia de vida, universal e orgulhoso: “Estamos progredindo!” A humanidade instruída prontamente depositou sua fé nesse progresso. E, no entanto, ninguém indagou a fundo: “Progresso sim, mas em quê?” Presumiu-se com entusiasmo que o progresso abrangeria todos os aspectos da existência e da humanidade em sua inteireza. Foi com base nessa intensa confiança no progresso que Marx, por exemplo, concluiu que a História nos levará à justiça sem a ajuda de Deus.

O tempo passou e ficou demonstrado que o progresso avança de fato, e surpreende superando expectativas, mas só o faz no campo da civilização tecnológica (com especial sucesso do ser humano e nas inovações militares).

O progresso de fato avançou magnificamente, mas levou a consequências que as gerações anteriores não poderiam prever.

Recursos ilimitados – A primeira bagatela que ignoramos e só recentemente descobrimos é que o progresso ilimitado não pode ocorrer dentro dos recursos limitados de nosso planeta; que a natureza precisa ser apoiada em vez de conquistada; que estamos devorando com êxito o meio ambiente que nos foi atribuído.

O segundo equívoco foi que a natureza humana não se torna mais amável com o progresso, conforme prometido. Tudo o que esquecemos foi a alma humana. Permitimos que nossas necessidades aumentassem à solta, e agora não sabemos para onde dirigi-las. E, com a assistência obrigatória dos empreendimentos comerciais, necessidades cada vez mais novas são inventadas, e algumas são totalmente artificiais; e buscamos-nas em massa, mas não encontramos realização. E nunca encontraremos.

O acúmulo interminável de bens? Isso também não trará realização. (Indivíduos perspicazes entenderam há muito que as posses precisam estar subordinadas a outros princípios, mais elevados, que devem ter uma justificativa espiritual, uma missão; de outra forma, como Nikalai Berdyayev opinou, elas trazem ruína à vida humana, tornando-se os instrumentos da avareza e da opressão).

Os transportes modernos escancararam o mundo para as pessoas no Ocidente. Mesmo sem eles, o homem moderno pode muito bem dar um salto para além de seu ser; com os olhos da televisão, ele está presente em todo o planeta ao mesmo tempo. E, no entanto, fica evidente que, com base nesse ritmo espasmódico de progresso tecnocêntrico, nos oceanos de informações superficiais e espetáculos baratos, a alma humana não cresce. Ao contrário, torna-se mais superficial, e a vida espiritual apenas se reduz. Como consequência, nossa cultura se torna mais pobre e mais opaca, embora tente ocultar seu declínio com a grande bulha das novidades vazias. Enquanto o conforto da criatura continua melhorando para a pessoa média, a evolução espiritual fica estagnada. A saciedade traz consigo a importuna tristeza do coração, à medida que sentimos que o torvelinho dos prazeres não traz satisfação e que, daqui a não muito tempo, pode-se nos sufocar.

Não, toda a esperança não pode depender da ciência, tecnologia, crescimento econômico. A vitória da civilização tecnológica também instilou em nós a insegurança do espírito. Suas dádivas enriquecem, mas também nos escravizam. Tudo não passa de interesses – não podemos ignorar nossos interesses –, tudo é uma luta por coisas materiais; mas uma voz interior nos diz que perdemos algo puro, elevado e frágil. Paramos de ver a finalidade.

Admitamos. Ainda que num sussurro e apenas para nosso íntimo: nesta azáfama da vida a uma velocidade atordoante, para que vivemos?

As perguntas eternas – Cabe a nós parar de considerar o progresso (que não pode ser interrompido por ninguém ou por nada) uma torrente de bênçãos ilimitadas e encará-lo antes como uma dádiva do alto, enviada para o julgamento extremamente complexo de nosso livre arbítrio.

As dádivas do telefone da televisão, por exemplo, quando usadas sem moderação, fragmentam a inteireza de nosso tempo, expulsando-nos do fluxo natural de nossa vida. A dádiva da expectativa de vida mais longa transformou – como uma de suas consequências – a geração mais idosa num fardo para seus filhos, enquanto condena os velhos a uma solidão interminável, ao abandono na velhice, por seus entes queridos, e ao irreparável distanciamento da alegria de transmitir sua experiência para os jovens.

Também os laços horizontais entre as pessoas estão sendo cortados. Com toda a evidente efervescência da vida política e social, o distanciamento e a apatia em relação aos outros se fortaleceu nas relações humanas. Consumidas pela busca de interesses materiais, as pessoas apenas encontram uma solidão que oprime. (Foi isso que deu origem ao brado do existencialismo).

Precisamos não nos perder no fluxo mecânico do progresso, mas também nos esforçar para domá-lo pondo-o a serviço do espírito humano; não nos tornar meros joguetes do progresso, mas buscar ou ampliar os meios de dirigir seu poder para a consecução do bem.

O progresso foi considerado um vetor luminoso e constante, mas ele se revelou uma curva complexa e retorcida que de novo nos reconduziu às mesmas perguntas eternas que assomaram nos tempos antigos, exceto pelo fato de que, naqueles tempos essas perguntas eram mais fáceis para uma humanidade menos desatenta, menos desconexa.

Perdemos a harmonia com a qual fomos criados, a harmonia interna entre nosso ser espiritual e físico. Perdemos essa clareza de espírito que era nossa quando os conceitos de Bem e Mal ainda não haviam se tornado tema de ridículo, não haviam sido descartados pelo princípio do meio-a-meio.

E nada fala mais do atual desamparo de nosso espírito, de nossa desorientação intelectual, do que a perda de uma atitude clara e calma em relação à morte. Quanto maior o bem-estar, mais fundo cala o medo enregelante da morte na alma do homem moderno. Este medo coletivo, medo que nossos ancestrais não conheceram, surgiu de nossa vida insaciável, ruidosa e agitada. O homem perdeu a noção de si mesmo como ponto limitado no universo, ainda que possua o livre arbítrio. E então, é claro, a ideia da morte torna-se insuportável: é a extinção de todo o universo num piscar de olhos. Tendo-nos negado a reconhecer o Poder Superior e imutável que paira sobre nós, preenchemos esse espaço com imperativos pessoais, e de repente a vida se torna de fato uma perspectiva angustiosa.

Após a guerra fria – Os meados do século 20 passaram para todos nós sob a sombra da ameaça nuclear. Isso pareceu apagar todos os vícios de nossa vida. Tudo o mais pareceu insignificante: já que de qualquer forma estamos condenados, por que não viver como queremos? E essa grande ameaça serviu também para interromper a evolução do espírito humano e adiar nossas reflexões sobre o significado de nossa vida.

Paradoxalmente, contudo, esse mesmo perigo deu temporariamente à sociedade ocidental uma espécie de finalidade unificadora da existência: resistir à ameaça mortífera do comunismo.

Claro que nem todos entenderam plenamente essa ameaça, e de modo algum essa firmeza foi igualmente mantida por todos no Ocidente; houve não poucos frágeis corações que impensadamente solaparam a posição do Ocidente. Mas a predominância de gente responsável no governo preservou o Ocidente e permitiu a vitória nas lutas por Berlim, Coréia, pela sobrevivência da Grécia e Portugal. (E, no entanto, houve uma época em que os chefetes comunistas poderiam ter desfechado um golpe fulminante, provavelmente sem receberem um golpe nuclear em troca. Pode ser que apenas o hedonismo daqueles chefetes decrépitos servisse para adiar sua maquinação, até que o presidente Reagan os desgovernou com a escalada de uma nova corrida armamentista em última análise insuportável).

E assim, no final do século 20, precipitou-se uma sequência de acontecimentos, aguardados por muitos de meus compatriotas mas que pegaram de surpresa muita gente no Ocidente: o comunismo desabou devido à sua inerente falta de viabilidade e sob o peso da podridão acumulada em seu interior. Desabou com uma velocidade incrível, e numa dezena de países de uma só vez. A ameaça nuclear de repente já não existia.

E então? Durante uns poucos curtos meses, o alívio radiante se propagou pelo mundo (embora alguns lamentassem a morte da utopia terrena, do paraíso socialista na Terra). Ele passou, mas de certa forma, o planeta não ficou mais tranquilo; ao contrário, parece que, com uma frequência cada vez maior, algo relampeja aqui ou explode acolá; e até reunir forças da ONU em número que dê para a pacificação se tornou uma tarefa nada fácil.

Além disso, o comunismo não está nada morto no território da ex-URSS. Em algumas repúblicas, suas estruturas institucionais sobreviveram na íntegra, ao passo que em algumas delas, milhões de quadros comunistas permanecem na reserva e suas raízes continuam mergulhadas na consciência e no dia-a-dia das pessoas. Ao mesmo tempo, novas e feias feridas surgiram em decorrência dos anos de tormento, por exemplo, o atual capitalismo incipiente, pejado de formas de comportamento improdutivas, selvagens e repulsivas; a pilhagem da riqueza nacional, cujo similar o Ocidente não conheceu. Isso, por sua vez, até levou uma população despreparada e desprotegida a ter saudades da “igualdade na pobreza” do passado.

Embora o ideal terreno do socialismo-comunismo tenha desabado, os problemas que ele pretendeu solucionar permanecem: o uso desenfreado da vantagem social e do poder desordenado do dinheiro, que muitas vezes decidem o curso dos acontecimentos. E, se a lição global do século 20 não serve como inoculação terapêutica, então o vasto rodamoinho vermelho pode se repetir totalmente.

A guerra fria se acabou, mas os problemas da vida moderna foram desnudados, mostrando-se imensamente mais complexos do que aquilo que até então parecia se enquadrar nas duas dimensões do plano político. A antiga crise do significado da vida e o antigo vazio espiritual (que durante as décadas nucleares se aprofundaram, em decorrência do descaso) se destacam ainda mais. Na era do equilíbrio do terror nuclear, esse vazio foi de certa forma disfarçado pela ilusão da estabilidade adquirida no planeta, uma estabilidade que se revelou apenas passageira. Mas agora a antiga pergunta implacável paira, mais clara ”Qual nosso ponto de destino?”

Às vésperas do século 21 – Hoje nos aproximamos de uma fronteira simbólica entre séculos e até milênios: poucos anos nos separam deste instante momentoso que, segundo o espírito impaciente dos tempos modernos, será proclamado um ano antes, sem aguardar o ano de 2001.

Quem, dentre nós, não deseja chegar a essa solene linha divisória com exultação e boa dose de esperança? Muitos assim saudaram o século 20, considerado século da razão superior, sem imaginar os horrores canibalescos que ele traria. Apenas Dostoievsky, ao que parece, previu o advento do totalitarismo.

O século 20 não assistiu ao aumento da moralidade na espécie humana. Extermínios, de outra parte, foram executados em escala sem precedentes, a cultura se empobreceu profundamente, o espírito humano declinou. (Embora o século 19, é claro, tenha contribuído muito para preparar esse desfecho). Portanto, que motivos temos nós para esperar que o século 21, eriçado de armamentos de primeira categoria nos dois lados, seja mais gentil?

E também existe a ruína ambiental. E a explosão demográfica global. E o problema colossal do Terceiro Mundo, ainda chamado assim com uma generalização inadequada. Ele constitui quatro quintos da humanidade moderna, e logo corresponderá a cinco sextos, assim se tornando o componente mais importante do século 21. Naufragando em pobreza e miséria, ele logo se erguerá, sem dúvida, com uma lista cada vez maior de exigências aos países desenvolvidos. (Tais pensamentos já estavam no ar durante o alvorecer do comunismo soviético. Poucos sabem, por exemplo, que em 1921 o sultão Gallev, tártaro nacionalista e comunista, preconizou a criação de uma Internacional de nações coloniais e semicoloniais e a implantação de sua ditadura sobre os Estados industrializados evoluídos).

Hoje, olhando a torrente cada vez maior de refugiados que jorra através de todas as fronteiras da Europa, é difícil para o Ocidente não se sentir uma espécie de fortaleza: uma fortaleza segura por enquanto, mas claramente sitiada. E, no futuro, a crescente crise ambiental pode alterar as zonas climáticas, levando à escassez de água potável e de terras adequadas em lugares onde eram abundantes. Isso, por sua vez, pode dar origem a novos conflitos ameaçadores no planeta, às guerras pela sobrevivência.

Assim, um complexo ato de equilíbrio se apresenta para o Ocidente: manter o pleno respeito a todo o precioso pluralismo das culturas mundiais e à sua busca de soluções sociais distintas, e ao mesmo tempo não perder de vista seus próprios valores, sua estabilidade historicamente singular de vida cívica sob o império da lei – estabilidade conquistada a duras penas que concede independência e espaço para cada cidadão particular.

Autolimitação – Esta era nos exorta a limitar nossas necessidades. É difícil nos impormos sacrifícios e recursos, porque, na vida política, pública e privada, há muito lançamos ao fundo do oceano a chave de ouro da autocontenção. Mas a autolimitação é o ponto de parada fundamental e mais sábio para o homem que alcançou sua liberdade. É também a via mais segura rumo à sua obtenção. Precisamos não esperar que acontecimentos externos nos pressionem duramente ou até nos derrubem; precisamos adotar uma posição conciliadora e, por meio da autocontenção prudente, aprender a aceitar o inevitável curso dos acontecimentos.

Apenas nossa consciência e as pessoas mais íntimas de nós sabem que nos desviamos dessa regra em nossas vidas pessoais. Exemplos de desvios desse curso pelos partidos e governos estão bem à vista.

Quando uma conferência dos alarmados povos da Terra se reúne por causa da ameaça inquestionável e iminente ao meio ambiente e à atmosfera do planeta (a Conferência da Terra no Rio, em 1992), uma potência que consome nada menos que a metade dos recursos atualmente disponíveis na Terra e que emite metade de sua poluição, insiste – por causa de seus interesses internos atuais – em reduzir as reivindicações de um acordo internacional sensato, como se não vivesse na mesma Terra. Então, outros importantes países se negam a atender até a essas reivindicações reduzidas. Portanto, numa corrida econômica, estamos nos envenenando.

Da mesma forma, a desagregação da URSS ao longo das enganosas fronteiras traçadas por Lênin propiciou exemplos marcantes de formações recém-nascidas que, na busca de uma imagem de grande potência, se apressam em ocupar extensos territórios que lhes são histórica e etnicamente alheios, territórios que contêm dezenas de milhares ou, em alguns casos, milhões de pessoas de etnias diferentes, sem pensar no futuro, esquecendo imprudentemente que tomar nunca traz benefício.

Desnecessário dizer que, aplicando-se o princípio da autocontenção a grupos, profissões, partidos ou países inteiros, as perguntas difíceis daí decorrentes superam em número as respostas já encontradas. Nesta escala, todos os compromissos com o sacrifício e a autonegação terão repercussões para multidões de pessoas que talvez estejam despreparadas ou se opõem a elas. (E até a autocontenção de um consumidor trará consequências para produtores em algum lugar).

No entanto, se não aprendermos a limitar firmemente nossos desejos e exigências, subordinar nossos interesses aos critérios morais, nós, a humanidade, simplesmente seremos estraçalhados quando piores aspectos da natureza humana mostrarem os dentes.

Isso foi descartado por vários pensadores muitas vezes, e cito aqui as palavras do filósofo russo do século 20, Nikolai Lossky: “Se uma personalidade não está voltada para valores mais nobres que o eu, a corrupção e a decadência inevitavelmente tomam conta.” Ou, se me permitem transmitir-lhes uma observação pessoal, podemos apenas experimentar a verdadeira satisfação espiritual não tomando, mas recusando-nos a tomar. Em outras palavras: adotando a autoconteção.

Hoje, a autoconteção nos parece algo totalmente inaceitável, constrangedor, até repulsivo, porque, ao longo dos séculos, nos desacostumamos do que para nossos ancestrais foi um hábito nascido da necessidade. Eles viveram com restrições externas muito maiores e tiveram muito menos oportunidades. A importância suprema da autocontenção só neste século se apresentou em sua inteireza premente para a humanidade. Todavia, levando-se em conta mesmos os vários vínculos mútuos que permeiam a vida contemporânea, é, não obstante, apenas por meio da autocontenção que podemos, apesar de grande dificuldade, curar gradualmente nossa vida econômica e política.

Hoje, não muitos aceitarão prontamente este princípio para si. No entanto, nas circunstâncias cada vez mais complexas de nossa modernidade, limitarmo-nos é o único meio verdadeiro de preservação para todos nós. E é útil restaurar a noção de que existe uma Autoridade Una e Superior – e o senso totalmente esquecido de humildade perante essa divindade.

Só pode haver um progresso verdadeiro com a somatória do progresso espiritual de cada indivíduo, do grau de perfeição pessoal no curso de suas vidas. Fomos recentemente entretidos por uma fábula ingênua sobre o feliz advento do “fim da História”, do avassalador triunfo de uma bem-aventurança pan-democrática. Esse, que é supostamente o acerto global máximo, foi alcançado. Mas todos nós vemos e sentimos que algo muito diferente está chegando, algo novo e talvez bastante rigoroso. Não, a tranquilidade não promete pousar em nosso planeta e não nos será concedida tão facilmente.

Porém, com toda certeza, não passamos em vão pelas provações do século 20, e nossa solidez conseguida a duras penas será de algum modo transmitidas às gerações vindouras.

(Transcrito de "O Estado de São Paulo")

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