Deus estava aqui ... e eu não sabia
Bayo Akomolafe

Você pode concordar comigo que nestes tempos muito modernos, quando tudo parece apressado; quando cada rosto parece escurecido pelo suave e sedutor brilho de um dispositivo de mão; e quando somos perpetuamente bombardeados com informações fluindo de pixels e outdoors, telas de televisão e manchetes estridentes; o desejo de reivindicar o santuário, de se mergulhar em águas refrescantes, é convincente. Mas onde encontrar o santuário? Onde está a casa? Penso que essas questões estão implícitas na maneira como pensamos sobre o pensamento - e certamente relevantes para a ideia de passar do ‘intelecto’ à ‘intuição’. É quase como se estivéssemos agarrando com prazer os vestígios ameaçados do sagrado quase morto em uma sociedade cada vez mais global que parece hostil ao encantamento. Por que, então, queremos passar do intelecto à intuição? O que está acontecendo para ocasionar essa mudança?

Em um sentido muito urgente (e também muito retórico), nós estamos em uma idade dos transbordamentos e das rupturas dos limites das coisas. Desde o vazamento de petróleo da BP de 2010 no Golfo do México, até a ‘revolta’ dos refugiados sírios, até as surpreendentes revelações de que com a NSA os americanos espionam todos os outros, e à implosão embaraçosa da política cortês com ‘fitas’ e jornalismo Wikileaks, parece que as coisas se desmoronam e os centros são sitiados e assombrados. Em um mundo de derramamentos, somos convidados a questionar nossos conceitos de pureza, de limites estáticos e propriedades predeterminadas. Tendemos a pensar no mundo em binários: nós contra eles, branco versus preto, homem versus mulher, humano versus não humano, Deus versus a concupiscência da carne, sujeito versus objeto, luz versus escuridão. Tudo o que está vivo e sagrado está confinado em um espaço muito pequeno - talvez o espaço coberto por um halo. Mas é esse o caso? Está o mundo fora de um halo morto e inerte, ou o halo também derrama?

O filósofo francês do século XVII, René Descartes, é creditado como sendo aquele que formulou o dito agora popular: penso, logo existo - um manifesto assustador para a morte e redundância do mundo. Com certeza, para Descartes, era importante fundamentar a ciência em algo que não podia ser refutado. E assim, com um experimento mental, ele passou a questionar a existência de tudo. Descobriu que podia dispensar sumariamente a existência de águias, de rios, nuvens de chuva, sanduíches em Londres, do fogo, do mundo inteiro de fato. Mas a única coisa que Descartes não podia duvidar era que ele estava duvidando. Ele chegou assim à conclusão de que a dúvida era a evidência da mente, e que a mente estava fundamentalmente separada do mundo material. De um material mais fino, menos discernível - por assim dizer. Desta forma, ele dividiu formalmente o mundo em formas que ainda ressoam na maneira como encontramos o universo - como um recurso, como uma ferramenta muda, silenciosa, ou pano de fundo para a gloriosa atividade de primeiro plano dos seres humanos.

Essas ortodoxias cartesianas situam a mente longe da matéria. O método científico baseia-se nesta suposição: para saber corretamente o que ‘é’ uma coisa, você se afasta dela - em certo sentido preservando a distância entre sujeito e objeto. Podia-se quase ver isso como um gesto burguês de repulsa! ‘Em última análise’, os parâmetros cartesianos têm nos levado a localizar o pensamento, o sentimento, a capacidade de agir e todos os misteriosos eventos psicológicos com os quais estamos intimamente envolvidos no cérebro. E assim, com grandes pinceladas, Descartes pintou o retrato de um mundo onde o encantamento é sempre escasso. Estamos dotados de alma num mundo que não tem alma até que seja tocado por nossa fálica presença. A alma é algo definhado, bloqueado no finito ... na ausência. A trama engrossa, e a dinâmica da fuga esperada é ativada.

Hoje, nossos muitos sistemas de ser e instituições são codificados com esses imperativos cartesianos. Quando derrubamos uma árvore e expandimos o regime de alcatrão e asfalto e falamos sobre mudança climática como se fosse simplesmente uma questão de continuidade humana, ou insistimos que os oceanos e sua inefável riqueza de vida realmente valem trilhões de dólares, estamos realizando um ato falho de lucidez - uma negação do significado e função do mundo que está supostamente ao nosso ‘redor’. Felizmente, nossas coordenadas cartesianas são satisfeitas por influências preocupantes e perturbadoras que impugnam esse modo de ser. ‘Novas’ histórias estão sendo ditas que nos fazem ruborizar. E se o mundo estiver vivo? E se houver encantamento, mente, beleza e atividade até mesmo nas coisas que se sentem mortas e meramente instrumental? Penso, logo existo! - que rude! Uma brincadeira perversa entre a matéria e a mente está a caminho. E a imanência estranha do sagrado no ordinário continua sua cruzada profana.

Numa época em que o mundo científico estava envolvido em questões sobre a essência da natureza - e especificamente a natureza da luz, se era uma onda (mostrando padrões de interferência) ou uma partícula (localizada em pequenos pedaços) - um médico do século 18, nascido em Londres, Thomas Young, veio com um experimento projetado para resolver a questão de uma vez por todas. Ele projetou um aparelho que mostrou que a luz comportava-se como uma onda, dispersa em toda parte - uma visão que ia contra a crença centenária de Isaac Newton que a luz era partícula.

Muitos anos depois de Young, Niels Bohr, um físico dinamarquês, pai da teoria quântica e contemporâneo de Einstein, insistiu que a luz não era inerentemente uma onda; ou uma partícula. Era ambas e nenhuma. Einstein, seu amargo rival, tentou refugar suas afirmações, insistindo que as implicações do pensamento de Bohr era que nada existia como uma certeza - ou que as coisas não vêm já feitas. Einstein queria acreditar que o mundo era ordenado, elegante, que tinha mensuráveis leis materiais que governavam como as coisas se relacionavam umas com as outras - mas aqui estava Bohr basicamente dizendo que as coisas em si não derivam sua ‘concretude’ de qualquer coisa de seu âmbito. E que a propriedade de uma coisa, a identidade de uma coisa, sua ontologia, o que torna um ser humano, ou uma xícara de chá, ou um sanduíche o que é, depende de como ele é avaliado. Bohr estava apontando que o mundo é feito de relações, não de coisas. É dentro do contexto das relações que as coisas obtêm sua ‘concretude’.

Se o mundo é uma relação contínua, se não há coisas em si mesmas, não existem fronteiras sólidas que não sejam então um indeciso congelamento em um fluido de conveniências mais que humanas, e se corrigirmos a ambiguidade apenas dentro do contexto desse fluxo, então temos de repensar tudo - até o pensamento. Pelo menos há algo interessante acontecendo que deve garantir um segundo olhar para nossas ideias sobre o mundo - em nossas cabaças de conhecimento. Estamos falando aqui de derramamentos! Derramamentos superiores e vazamentos que não podem ser remediados.

Karen Barad, física teórica e feminista - cujo trabalho enriqueceu grandemente o meu trabalho com o mundo - formulou o conceito de intra-ação (em oposição à ‘interação’) para descrever como as coisas se misturam constantemente e como são originais. Donna Haraway fala sobre ecologias infecciosas, sugerindo que o mundo surge de um ato de se tornar-junto - uma sympoiesis (*), um mover-se juntos. John Shotter, ‘refletindo’ nessas mudanças dramáticas, explica que tudo isso "significa que não existem ‘coisas’ para nós como ‘coisas-em-si’ fixas e permanentes separadas de seu ambiente. Todas as ‘coisas’ existem como ‘feitos’, como mandados ou capacidade de ação, como coisas presentes focalizadas dentro de um processo maior, sem cessar, desenfreado, sem limites e fluido. Assim, como seres dentro (e de) um mundo que está sempre em processo de tornar-se diferente do que era antes, devemos aprender a pensar ‘enquanto em movimento’, por assim dizer, e tratar nossos ‘pensamentos’ como resultados temporários dentro de um processo contínuo de tornar-se".

O que tudo isso aponta é que as coisas que chamamos de ‘pensamentos’ são mais bem imaginadas como processos intra-ativos que ocorrem no mundo inteiro. O pensamento não está localizado no cérebro humano. Nós não somos especiais. As orcas são conhecidas por realizarem experiências sobre as pessoas que pensavam estar conduzindo as únicas experiências. Mas não são só os cães, os cetáceos e os animais que são grandes como nós, é que não podemos afirmar com certeza que vivemos no mundo descrito por Descartes - o mundo dos seres isolados e dos outros empobrecidos. Estamos com derramamentos nas fronteiras, e os binários fálicos entre humanos e não-humanos, masculino e feminino, isso e aquilo, aqui e ali, estão sucumbindo.

A mente torna-se matéria e a matéria não se parece mais com a qualidade reducionista, espremida, que pensávamos ter descoberto completamente. É neste espaço que muitos estão falando de ‘intra-pensamento’ ou a ideia de que a mente é transcorpórea, perturbando fronteiras entre dentro e fora, punindo nossas tentativas de rapidamente nos ocultar longe do ‘ambiente’. A proposta de que ‘temos’ almas - almas que são responsáveis por todo o nosso comportamento - é sumariamente interrompida quando seguimos cuidadosamente os processos de transição que existem entre ‘mente’ e ‘matéria’. Eu gosto de dizer que a alma não está mais dentro, ou fora - apenas ‘com’ (**). É nos espaços entre os relacionamentos, nos ermos além de nossos muros e dentro de nossos muros que a alma prospera - e em certo sentido, ainda não a encontramos.

Nossas navegações diárias do mundo, aquelas coisas que parecemos saber - mesmo que não possamos apoiá-las de maneira que satisfaçam o público - são tão importantes quanto aqueles conhecimentos que parecem estar intelectualmente fundamentados. Mas, perpetuo um falso binário falando assim. A gramática me atrapalha aqui. Intelecto e intuição não são dois lados de uma moeda. Não estão separados, e seus significados ainda estão em jogo. Ambos são processos mundiais. Se adotarmos as compreensões convencionais e figurarmos a intuição como redes neurais pré-conscientes moldadas pela prática e pelo comportamento, então significa que o intelecto - ou o processo racional mais consciente envolvido em nossas práticas cognitivas - faz parte dessa configuração. Ambos são co-constitutivos, da mesma forma que o oceano constitui a costa e o litoral. O que poderia acontecer se começássemos a confiar em nossos corpos, nossos sentimentos - como o que o mundo está fazendo?

Concluindo, esta redescrição feminista pós-humana do mundo coincide com o que o meu povo da Nigéria parece saber - que o mundo está vivo, e podemos aprender a ouvir. Essa matéria significa, inicia, conduz experimenta, anseia, espera, escuta, maravilha, perturba e cria. De repente, o mundo anoréxico de quatro coordenadas - para frente, para trás, para cima, para baixo - está interrompido (ou devo dizer ‘intra-rompido’?) por novas direcionalidades perversas: estranho.

Nós fazemos parte de um mundo que é costurado completamente com vitalidade - um mundo que não foi terminado nas histórias míticas da origem que contamos. Um mundo que ainda está se definindo, ainda desfazendo seus próprios parâmetros, ainda trabalhando seus significados. Um mundo que está sempre em jogo.

Talvez, como Jacó - aquele velho trapaceiro de afeições judaico-cristã - que dormia no exílio, colocando sua cabeça cansada e perturbada sobre uma rocha, amaldiçoando seus caminhos e o fato de estar mais uma vez fugindo de um irmão que queria sua cabeça, podemos despertar do sonho das fendas cartesianas, darmos um ‘melhor’ olhar para o mundo que constantemente nos esforçamos para deixar para trás, e exclamar, como ele fez, "Deus estava aqui, o sagrado esteve aqui o tempo todo, aqui mesmo ... e eu não sabia."

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(*) Sistemas simpatizantes (que produzem coletivamente) não têm fronteiras espaciais ou temporais autodefinidas. A informação e o controle são distribuídos entre os componentes. (NT)

(**) O autor faz aqui um jogo com as palavras within (“with+in”) e without (“with+out”) na frase I like to say that the soul is no longer within, or without – just ‘with’. (NT)

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