Com internet, ação em rede começa a desbancar diplomacia tradicional
Anne-Marie Slaughter

RESUMO Cientista política afirma que formas tradicionais de governança internacional, baseadas em tratados e decisões dos Estados, serão substituídas por ações de uma rede ampla de atores. Para ela, a abertura de conexão à internet será a linha que dividirá os países na nova ordem global, numa cisão semelhante à da Guerra Fria.

Se a tradicional arte de governar ("statecraft") vem se provando cada vez menos capaz de resolver os problemas mundiais, chegou a hora de recorrermos à "webcraft" (habilidade de rede).

"Statecraft" é o mundo tradicional da diplomacia, dos tratados e das instituições internacionais, com decisões tomadas por estadistas (quase todos homens) em embaixadas e nos elegantes salões dos ministérios de Relações Exteriores em todo o mundo.

A "webcraft", por sua vez, representa a política externa do século 21, um complexo vasto e disperso de redes, coalizões, parcerias e iniciativas realizadas por empresas, ONGs, igrejas, universidades, fundações, municípios e indivíduos muito determinados, todos trabalhando com governos nacionais, ou paralelamente a eles, ou mesmo lhes fazendo oposição.

Cientistas políticos e especialistas em política externa vêm lamentando o declínio da ordem liberal internacional, expressão pela qual designam o conjunto de instituições criado em grande medida pelos Estados Unidos e seus aliados no pós-Segunda Guerra Mundial.

Organização das Nações Unidas (ONU), Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização Mundial do Comércio (OMC), Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e diversas outras siglas correlatas simplesmente não são mais o que já foram um dia.

O Acordo de Paris sobre a mudança do clima representa um triunfo para a diplomacia mundial, mas criou uma estrutura na qual os países se comprometerão a respeitar metas flexíveis de emissões de poluentes ao longo do tempo, em vez de cumprirem obrigações definidas nos termos da lei internacional.

Trata-se também do primeiro acordo global a ser celebrado desde o Tratado sobre Minas Terrestres e a convenção que criou o Tribunal Penal Internacional nos anos 1990, ainda que o mundo enfrente diversas outras ameaças que requerem atenção.

Terrorismo, tráfico, degradação ambiental de terra e mar, escassez de água e comida, pandemias, corrupção, Estados em colapso, refugiados e violências de toda espécie fazem parte da lista.

REDES

"Webcraft" parte do princípio de que, embora a ordem internacional seja composta de Estados soberanos — os únicos agentes reconhecidos como sujeitos, ao lado das instituições multilaterais —, o mundo em que de fato vivemos, em oposição àquele que construímos em nossas mentes e no papel, é uma vasta teia de redes que se entrelaçam.

Imagine um mapa da internet ou do mundo à noite, com corredores de luz cruzando continentes, e você visualizará a ideia. Nesse cenário, qualquer um pode iniciar e levar uma ação internacional adiante — o que terroristas, traficantes (de drogas, armas e pessoas) e outros criminosos sabem muito bem.

Naturalmente, é conveniente ter poder e influência doméstica. Dois dos melhores exemplos de "webcraft" efetiva foram iniciados pela Fundação Bill & Melinda Gates e pela Bloomberg Philantropies. A Aliança Mundial para Vacina e Imunização atendeu, segundo suas próprias estimativas, cerca de 640 milhões de crianças.

A aliança reúne fundações e organizações multilaterais com o objetivo de trabalhar com governos de países desenvolvidos e em desenvolvimento, grupos da sociedade civil, institutos de pesquisa e indústrias.

A Fundação Gates e outras entidades filantrópicas oferecem fundos, as companhias farmacêuticas desenvolvem vacinas, a OMS regulamenta a qualidade dos medicamentos e grupos da sociedade civil implementam os programas de imunização.

Do lado do clima, a Bloomberg Philantropies promoveu e bancou a criação do Pacto Global de Prefeitos pelo Clima e a Energia, de forma a conectar e mobilizar agentes em mais de 7.100 cidades do planeta para reduzir emissões de carbono e mitigar os efeitos da mudança climática.

Esses prefeitos desempenharam papel importante na pressão pelo Acordo de Paris e agora estão trabalhando para implementá-lo, independentemente de seus governos nacionais.

Donald Trump anunciou que se retiraria do Acordo de Paris em 1º de junho de 2017 (um ato de "statecraf", estadismo à moda antiga). Horas depois, o então prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, tuitou: "Nós não podemos esperar pela ação dos governos nacionais quanto à mudança do clima. Para soluções, olhe para as cidades".

No dia seguinte, 30 prefeitos, 3 governadores, mais de 80 reitores de universidades e 100 líderes empresariais americanos começaram a negociar com a ONU que seus compromissos de redução de emissão de carbono fossem aceitos junto com os países signatários (um exemplo de "webcraft").

Note-se que o projeto de vacinação é uma aliança, enquanto a mobilização de prefeitos criada por Bloomberg é um pacto global. Ambos são termos clássicos da diplomacia: Estados formam alianças e pactos. E, na ordem internacional liberal, eles ditavam a agenda mundial e controlavam o grau de ação ou inação.

Essa ordem bem pode estar em declínio, paralisada pelo número imenso de governos que precisam chegar a um acordo a respeito de qualquer tema em um planeta com mais de 200 países, eivado de impasses entre potências ascendentes, vigentes e em restabelecimento.

TABULEIRO DOS PAÍSES

Mas uma nova ordem está surgindo: em torno, acima, abaixo e através do tabuleiro de xadrez dos Estados. Ela é muito mais bagunçada e difícil de enxergar, mas traz a promessa de ser muito mais fácil de moldar ou, ao menos, de se penetrar.

As duas ordens podem se unir — e o farão. De fato, prefeitos e outros agentes são reconhecidos no Acordo de Paris como partes interessadas não signatárias. Sob as leis internacionais, eles não podem assinar o tratado, mas os países participantes reconhecem seu interesse no desfecho do processo e os envolvem cada vez mais nas negociações.

Os governos também estão reconhecendo a vantagem de eles próprios criarem redes e se conectarem a elas.

A grande estratégia chinesa "um cinturão, uma estrada" — concebida para renovar as rotas de comércio terrestres e marítimas da China para a Europa, passando pelo sudeste e pelo centro da Ásia — tem como objetivo um mundo de redes comerciais, culturais e de segurança em que todas as estradas levem a Pequim.

A União Europeia segue caminho semelhante. Em sua Estratégia Global de Política Externa e de Segurança de 2016, ela propôs agir como formuladora de agendas, um conector, coordenador e facilitador em um mundo unido por redes.

O Canadá está em vantagem no jogo, sobretudo se comparado a seu vizinho ao sul. O estudo de política internacional divulgado pelo Partido Liberal foi intitulado "Canadá no Mundo", com o subtítulo "uma estratégia para redes mundiais".

Seu objetivo é conseguir influência por meio de conectividade, colaborando com governos, ONGs, o setor privado e segmentos demográficos que abarcam desde a juventude e a academia canadense até grupos religiosos e artistas.

Contudo, conectar-se requer abertura, dentro das sociedades e além das fronteiras. Para ser parte da internet mundial, um Estado precisa permitir que seus cidadãos se conectem a ela. Para que cidadãos e outros membros da rede possam se organizar mundialmente, eles precisam ser capazes de encontrar suas contrapartes em outros países e de se conectar com elas.

Assim, a condição de aberto ou fechado (que corta ou bloqueia conexões) será a linha que dividirá os países na ordem mundial que está emergindo, uma divisão tão saliente quanto a que separava nações capitalistas e comunistas durante a Guerra Fria.

Lutar pela abertura — para pessoas, bens, serviços, conhecimento e comunicações — e criar as condições internas e externas essenciais para seu funcionamento é o desafio mais importante para nossas instituições mundiais, nossos governos e para todos nós.

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Anne-Marie Slaughter, cientista política americana, é professora da Universidade de Princeton, presidente do think tank New America e autora de "A New World Order" (Princeton University Press).

Fonte: Folha de S.Paulo

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