A Criatividade
Alice A. Bailey

Em um artigo anterior sobre a faculdade criadora ressaltei que as ideias são o principio motivador que subjaz em todas as formas criadas. Sugeri que cada forma é um símbolo e cada símbolo é, portanto, a forma externa e visível de uma realidade interna e espiritual. Isto é verdade com relação ao que o homem cria, mas essas formas superiores (das quais a própria humanidade é uma expressão) são a criação de grandiosas ideias que emanam da Mente de Deus. Grande parte do que vou expor são citações extraídas do livro do Dr. Jung, “O Homem Moderno em Busca de sua Alma”, pois expressam muito melhor minhas ideias. Este livro será muito útil para todos, porque assinala o efeito modelador que as ideias exercem no homem, nas seguintes palavras:

“Nada influi tanto a nossa conduta como as ideias intelectuais. Mas quando uma ideia é a expressão de uma experiência psíquica, que deu seus frutos em regiões separadas e que não têm relação histórica, como Oriente e Ocidente, então devemos aprofundar a questão. Tais ideias representam forças que estão mais além da justificativa lógica e da sanção moral, sendo sempre mais fortes que o homem e seu cérebro. O homem crê que ele modela essas ideias, mas na realidade são elas que o modelam e o tornam intérprete inconsciente”.

Em consequência, no processo criador devemos reconhecer dois aspectos do trabalho: aquilo que produz no homem um despertar criador mediante o impacto sobre sua consciência, ideias que emanam de alguma fonte superior, e as ideias menores, visões e conceitos que capta e às quais ele mesmo dá forma. As formas que cria podem ser revestidas de beleza, utilidade prática, cor, palavras e sons musicais; mas por trás da forma se acha a ideia percebida, à qual o criador procura dar expressão. Portanto, o criador é responsável pela forma e não pela ideia em si. Jung faz notar que:

“É muito certo que as ideias amplamente aceitas nunca são de propriedade pessoal do seu pseudoautor, pelo contrário, ele é servidor das suas ideias. As grandes ideias aclamadas como verdades contêm algo peculiar em si mesmas. Embora venham à existência em um momento determinado, são e sempre foram eternas; surgem da região da vida procriadora e psíquica, onde a mente efêmera do ser humano se desenvolve como uma planta que floresce, dá semente e fruto e depois seca e morre. As ideias emergem de uma fonte que não está contida na vida pessoal de um homem. Nós não as criamos, elas nos criam a nós. Ao expressar as ideias, confessamos inevitavelmente não somente o melhor que há em nós, como também as nossas deficiências e erros. Isto sucede especialmente no caso das ideias acerca da psicologia. De onde podem provir as ideias, que não seja do aspecto mais subjetivo da vida? A experiência no mundo objetivo pode nos salvar dos preconceitos subjetivos? Não é cada experiência, ainda no melhor dos casos, uma interpretação subjetiva em grande medida? Por outro lado, o sujeito também é um fato objetivo, um pedaço do mundo. O que dele surge, depois de tudo, provém do solo universal, assim como o mais estranho organismo é nutrido pela Terra que compartilhamos. São precisamente as ideias mais subjetivas que estão mais próximas da natureza e do ser vivente e que merecem ser chamadas de verdadeiras. Mas qual é a verdade?”

É evidente que quando o homem procura viver em contato com a sua alma e em estreita relação com o aspecto criador do seu próprio ser, tem que aprender a penetrar na região subjetiva da qual emanam as ideias verdadeiras e reconhecê-las antes de poder lhes dar forma. Muito do que se produz hoje nos diversos campos do esforço criador não encerra uma ideia verdadeira; a forma não encarna algo raro, original ou real, e a razão disso não tem que ser procurada muito longe. O homem que cria estas frívolas expressões da arte não está em contato com o mundo das ideias. Na realidade ele nada expressa, exceto a vaga ambição de fazer algo que chame a atenção para atender a um anseio inato de ser reconhecido ou uma necessidade interna de expressar algo, um algo tão nebuloso e indefinido que o impulso não é adequado para construir a forma. Primeiro deve dominar o segredo do contato, depois penetrar e resolver o mistério do mundo de valores e significados; o homem deve ser um criador, porque forçou a entrada ao reino subjetivo de pensamento e visão, que encerra em si o espírito criador. Diz Jung:

“A faculdade criadora, tal como o livre arbítrio, contém um segredo”.

“O psicólogo pode descrever o processo destas duas manifestações, mas não pode achar solução para os problemas filosóficos que oferecem. O homem criador é um enigma que poderíamos elucidar de várias maneiras, embora sempre seria em vão; é uma verdade que a psicologia moderna evitou se ocupar do artista e da sua arte. Freud acreditou que havia encontrado a chave em seu método de relacionar a obra de arte com as experiências pessoais do artista. A este respeito, é verdade que há certas possibilidades, pois é possível conceber que uma obra de arte ou uma neurose possa ser atribuída aos nós da vida psíquica denominados complexos. A grande descoberta de Freud foi estabelecer que a neurose tem origem causal na zona psíquica, e surge de estados emocionais e experiências reais ou imaginárias da infância. Alguns dos seus seguidores como Rank e Steckel fizeram investigações em linhas similares e obtiveram importantes resultados. É inegável que a disposição psíquica do poeta compenetra a raiz e os derivados da sua obra. Nada de novo há na asseveração de que os fatores pessoais influem em grande parte na escolha do poeta e no emprego dos seus materiais; no entanto, deve se dar crédito à escola freudiana porque demonstrou o grande alcance desta influência e em que forma curiosa se expressa.

“Toda pessoa criadora é uma dualidade ou uma síntese de atitudes contraditórias. Por um lado é um ser humano com uma vida pessoal, enquanto que, de outro, é um processo criador impessoal. Assim como um ser humano pode ser sensato ou mórbido, da mesma maneira devemos observar a sua constituição psíquica para determinar a sua personalidade. Mas só podemos compreendê-lo em sua capacidade de artista observando a sua realização criadora. Cometeríamos um grave erro se procurássemos explicar a forma de viver de um cavalheiro inglês, um oficial prussiano ou um Cardeal, em termos de fatores pessoais. O cavalheiro, o oficial e o clérigo atuam como tais de forma impessoal, e a constituição psíquica de cada um está qualificada por uma objetividade peculiar. Devemos convir que o artista não atua como autoridade, o oposto está mais próximo da verdade. No entanto, assemelha-se em algo aos tipos mencionados, porque a disposição especificamente artística encerra um excesso de vida psíquica coletiva, em oposição à pessoal. A arte é uma espécie de impulso inato que se apodera de um ser humano e o torna seu instrumento. O artista não é uma pessoa dotada de livre arbítrio que busca seus próprios fins, mas aquele que permite à arte realizar seus próprios fins por seu intermédio. Como ser humano poderá ter caprichos, vontades e objetivos pessoais, mas como artista é um homem no sentido mais elevado – um ‘homem coletivo’ – aquele que leva e modela a vida psíquica inconsciente do gênero humano. Para realizar este difícil destino é necessário, às vezes, ter que sacrificar a felicidade e tudo aquilo que faz a vida digna de ser vivida pelo ser humano.

“Sendo assim, não é de estranhar que o artista seja um caso especialmente interessante para o psicólogo que emprega um método analítico. A vida de um artista só pode ser uma vida de conflitos, porque em seu interior há duas forças em luta – por um lado o anseio natural de felicidade, de satisfação e segurança na vida, por outro uma paixão avassaladora por criar, a qual pode ir muito longe, até se sobrepor a todo desejo pessoal. A vida do artista, via de regra, é tão altamente insatisfatória – para não dizer trágica – no aspecto humano, devido à inferioridade pessoal e não pela distribuição sinistra. Dificilmente há exceções à regra de que uma pessoa deve pagar caro pelo dom divino do fogo criador.

“A imagem arquetípica do sábio, do salvador ou redentor, está enterrada e adormecida na consciência do homem desde o alvorecer da cultura; desperta-se nas épocas tumultuadas e a humanidade está cometendo um grande erro. Quando alguém se desvia, sente a necessidade de um guia ou Instrutor, e inclusive de um médico. Estas imagens primordiais são numerosas, mas não aparecem nos sonhos nem nas obras de arte até que vêm à existência por uma perspectiva geral extraviada. Quando a vida consciente se caracteriza pela unilateralidade e por uma atitude falsa, entram então em atividade as imagens, poder-se-ia dizer ‘instintivamente’, e surgem à luz nos sonhos e visões de artistas e videntes, restaurando assim o equilíbrio psíquico da época.

“Desta forma o trabalho do poeta vem preencher a necessidade espiritual da sociedade em que vive, e por esta razão seu trabalho significa algo mais do que o seu destino pessoal, quer se dê conta disso ou não. Sendo essencialmente o instrumento para seu trabalho, está subordinado a ele e não podemos esperar que o interprete para nós. Procurei lhe dar forma, o melhor possível, e deve deixar que os demais e o futuro o interpretem. Uma boa obra de arte é como um sonho; apesar de sua aparente realidade não se explica por si mesma e sempre é verídica. Um sonhador nunca diz: ‘você deve crer nisso’ nem ‘esta é a verdade’. Apresenta uma imagem da mesma forma como a natureza deixa crescer uma planta e devemos chegar às nossas próprias conclusões. Se uma pessoa sofre uma pesadelo significa que é muito medrosa, ou então que está isenta de temor; se sonha com um sábio ancião, pode significar que é demasiado pedagógica ou também que necessita de um Instrutor. De forma sutil, ambos os significados chegam ao mesmo, e nos daremos conta se deixarmos que uma obra de arte atue sobre nós assim como atuou sobre o artista. Para compreender o seu significado, devemos permitir que nos modele como modelou a ele, então compreenderemos a natureza da sua experiência. Vemos que extraiu das forças curadoras e redentoras da psique coletiva que subjaz na consciência com seu isolamento e erros penosos; que penetrou na matriz da vida em que todos os homem estão incrustados, que transmite um ritmo comum a toda a existência humana e permite ao indivíduo comunicar seus sentimentos e lutas a toda a humanidade.

“O segredo da criação artística e da efetividade da arte reside no retorno ao estado de participação mística – aquele nível de experiência que vive o homem e não no indivíduo, e onde a felicidade e a dor de um só ser humano não conta, mas sim a existência humana. Temos aqui porque toda grande obra de arte é objetiva ou impessoal e, no entanto, nos comove profundamente, e também porque a vida pessoal do poeta não pode ser considerada como essencial para a sua arte, mas uma ajuda ou um obstáculo à sua tarefa criadora. Poderá seguir o caminho de um filisteu, de um bom cidadão, um neurótico, um demente ou um criminoso. Sua carreira pessoal pode ser inevitável ou interessante, mas não explica o poeta”.

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Colaboração: Ari de Goes Júnior

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