Além do mero ensinamento...

Sathyanaggar

"Nas palestras do Mestre, muito além do Ensinamento, impressionava-me o modo como ele tirava os sapatos ao adentrar o Templo. Pois o fazia com uma fineza e uma delicadeza de gestos e de movimento raras de fato de serem encontradas nos tempos atuais.

Um dia, perguntei-lhe onde adquirira aquele salutar hábito.

- Já devo ter passado pelo Japão em uma das minhas muitas encarnações anteriores. Lá, é comum deixar os sapatos do lado de fora das casas, respondeu.

- Talvez eu tenha "caído aos pés do vencedor para ser o serviçal de um samurai", como diz a canção... Talvez eu tenha sido o próprio samurai. Ou um noviço num mosteiro Zen. Ou, muito mais provavelmente, uma simples camponesa. Uma mulher que morreu de parto. Lembro ainda de alguns detalhes, como os cultivos nos verdes campos de arroz junto às montanhas. A vida dura, o trabalho simples, num Japão feudal. O rigoroso inverno, a vida em comunidade em uma pequena aldeia agrícola. Nos reuníamos em torno do fogo para compartilhar as nossas histórias então, num mundo pré-eletricidade e a anos luz de internet e bate-papos on line.

- Lembro ainda os momentos de privação e de doença, muitas vezes fome. Mas momentos também de grande beleza e encantamento. Como o escutar do canto dos riachos descendo as encostas num dia ensolarado de primavera, após a chuva. O suave sabor do arroz novo acompanhado de peixe seco temperado com algas marinhas e bardana. O colchão de palha que abrigava o meu corpo cansado e o meu sono povoado de sonhos e de temores noturnos...

Tudo isso disse-me o Mestre, enquanto, lentamente, calçava os sapatos ao findar a palestra. Aquilo ecoou fundo em minha alma.

- Talvez tudo isso seja não mais que o prenúncio de nossas vidas futuras, pois tudo aquilo que fazemos com gratidão e inteireza ecoa por toda a Eternidade, prosseguiu o Grande Instrutor.

- Todas aquelas dificuldades e privações do passado, por certo, aprimoraram o nosso Espírito e nos fizeram o que somos hoje. Do mesmo modo que as nossas ações e lições atuais preparam o nosso caminho para as realizações do futuro, como os duros testes que aguardam os iniciados que se preparam para a admissão na Loja Azul, em Sírius...

- Afinal, uma vida fácil e confortável não favorece a evolução de ninguém, mas apenas abre a porta para males sutis disfarçados num bem-estar material e egoísta que, mais cedo ou mais tarde, cobrará o seu preço. Difícil é, na verdade, a caminhada daquele que se propôs a trilhar a Senda. Mas a alegria do serviço e o contentamento do Espírito são recompensas infinitamente superiores para todos aqueles que são sinceros e perseveram em seu esforço....

Dizendo isto, o Mestre saiu, após dar três pancadas com o seu cajado de bambu no piso seco de madeira do templo, perfumada com incenso de sândalo e pétalas de rosa espalhadas pelos discípulos.

"O Caminho do Amor é o Caminho Iluminado. E antes que possa trilhar o Caminho, o Homem deve se tornar, Ele próprio, o Caminho", dizia um dos cartazes do Templo, emoldurado com uma bela foto de dois monges cruzando uma frágil ponte suspensa sobre um escarpado abismo envolto em denso nevoeiro...

- Assim como é essa ponte deve ser a vida, pensei, num momento de reflexão.

- Uma longa travessia pendurada sobre o Vazio, que se repete por vidas intermináveis, num demorado processo de evolução e aperfeiçoamento. Mas, quando as paredes do Templo interior finalmente estiverem prontas, o resultado será de uma beleza indizível e o trabalho passará, enfim, para um plano mais elevado, muito além do plano físico e material, ponderei

E lembrei mais uma vez de como apreciava ver o Mestre calçar e descalçar os sapatos ao adentrar e sair do Templo.

Este simples pensamento me deu ânimo para prosseguir na minha jornada com um esforço renovado e uma visão ampliada, onde as diversas vidas se interconectam e o Eterno Presente brilha no momento da revelação".

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